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  • Foto do escritorTalita Gantus

A relação entre gênero e desastres

Atualizado: 10 de set. de 2021

Precisamos tratar aqui de questões da mulher.


Mas, “Haverá mulher?”, perguntou Beauvoir, no início de sua tese sobre ‘O segundo sexo’.


Bento Rodrigues, MG, após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, MG. (Foto: Pedro Salomão)


Sabemos que a organização social atual se baseia no gênero: ela depende do papel de gênero e entrincheira-se na opressão de gênero. Mas, em verdade, a mulher e o homem nada mais são que uma performance social, um papel normativo desempenhado nas sociedades moderna e pós-moderna, a partir de uma lógica colonial e binária. Sexo biológico, órgão sexual, não definem gênero. Como disse Geni Núñez, psicóloga e pesquisadora decolonial: “Imaginem alguém nomear uma bochecha como masculino, uma perna como masculino? Achar que pedaços do corpo têm gênero é um devaneio cis.


Junto ao papel social, vem a divisão sexual de tarefas - também socialmente construída. Essa forma de organização se estabelece numa relação intrínseca com o modo de produção econômico. Pois, o que produz as classes na sociedade capitalista (classe de quem detém os meios de produção e de quem não os têm e, portanto, vende sua força de trabalho) não são apenas as relações que diretamente exploram a mão de obra por um salário que mal paga a subsistência. São, também, as relações que a geram e repõem. Delega-se, assim, à mulher o papel de gerar, de dar à luz esses futuros trabalhadores e de todas as tarefas que isso traz consigo. Que não são remuneradas.


Essas relações tornam possível a manutenção de um exército de trabalhadores reserva, necessários para que a exploração produza mais-valia (lucro pela exploração da força de trabalho). Afinal, aqueles que são marginalizados a condições socioeconômicas precárias, aceitam trabalhos insalubres e mal remunerados. Isso garante que trabalhadores sejam facilmente repostos e que sua força de trabalho custe cada vez menos, já que eles são cada vez mais. Por isso, Nancy Fraser, filósofa e pesquisadora, sustenta a tese de que o patriarcado, a opressão de gênero, e a consequente divisão sexual de tarefas (trabalho produtivo e trabalho reprodutivo), beneficia o atual sistema econômico. E, consequentemente, estão intrinsecamente relacionadas.


Enquanto esse sistema econômico em que vivemos exige mais horas de trabalho remunerado por unidade familiar e menos suporte estatal à assistência social, ele pressiona até o limite comunidades, famílias e, sobretudo, mulheres - principalmente as negras (lembremos do caso Miguel, em Recife). Elas trabalham fora, muitas vezes em subemprego(s), cuidam da casa, dos filhos, cozinham, lavam, passam, e ainda são cobradas à produzirem. E o trabalho de reprodução social, vital para o funcionamento da sociedade, é desvalorizado, quando não ignorado: ninguém repara o chão limpo, apenas quando está sujo.


Mas, quais mulheres seguem marginalizadas pela sociedade patriarcal, cis e branca? As negras, indígenas, trans, empobrecidas - e muitas sofrem essas opressões de modo interseccional, cumulativo.


O que é preciso ter em mente, para a análise que segue, é: as tarefas e atividades, os papéis de cuidado desempenhados, as demandas de responsabilidades, a organização e hierarquia da família cis-hetero, a figura biológica (relacionada ao sexo) da mãe e do pai, são construções simbólicas, representadas no real, e que afetam o imaginário (individual e coletivo). Consequentemente, o comportamento e as ações de pessoas em cenários de desastres na nossa sociedade - ocidental e colonizada - são definidos por essas condições de socialização genderizada (organizada em padrões sociais de gênero). Não por condições biológicas, físicas, sexuais.


Cabe ressaltar, também, que o desastre é uma disrupção que ocorre como fenômeno social e como acontecimento físico. Não existe desastre natural. E os desastres causados por fenômenos meteorológicos, como inundações, deslizamentos e tornados, não são naturais? Não. Explico!


O risco a desastre (geralmente representado como R = S x P x V) é definido pela relação entre a suscetibilidade (da encosta em deslizar, da barragem em se romper, de uma determinada região do planeta estar localizada em zonas suscetíveis aos fenômenos climáticos, da capacidade de cheia da planície de inundação - hoje ocupada pela pavimentação urbana, etc.), o perigo (a condição do risco: perigo de romper, de escorregar, de inundar) e a vulnerabilidade (econômica, psicológica, socioambiental, comunitária, etc). A alteração de qualquer um desses condicionantes interfere no grau do risco vivenciado. O desastre, por sua vez, relaciona-se a perdas humanas, ambientais, materiais, imateriais e simbólicas, que alteram a dinâmica social antes estabelecida. Atua como “desaglutinador da ordem social”, como diz Norma Valencio, socióloga.


Todavia, nem todo risco evolui, necessariamente, a um desastre. Se uma encosta desliza no alto da Serra do Mar, longe de ocupações humanas, não temos um desastre, e sim um fenômeno de evolução natural do relevo. Quando o rio Tietê enchia e transbordava, antes da ocupação humana, não havia desastre; era apenas o rio seguindo seu curso natural e cíclico de enchentes nas suas margens - não à toa, conhecida na geologia como planície de inundação.


Mas, independente se os desastres são causados por fenômenos naturais ou tecnológicos (rompimento de barragens, de oleodutos, explosões), os homens e as mulheres são afetados de maneiras diferentes. Segundo a ONU, mulheres e meninas têm mais probabilidade de morrer em tragédias causadas por fenômenos naturais; elas representaram 77% dos mortos no tsunami no Oceano Índico, em 2004.


O fato das mulheres serem submetidas a uma socialização que tende a diminuí-las, a reconhecerem-nas como vítimas (exceto quanto sofrem violência de gênero - como o caso Mariana Ferrer nos escancarou), como "sexo frágil", ou como expõe Bourdieu, “fracas, sem a coragem para lidar com as dificuldades agudas as quais exigiriam o ato viril, sendo o homem o esteio das mulheres nos momentos críticos”, reverbera nos padrões socioculturais. E permite que, em um momento de desastre, o agente de emergência trate a mulher como o ser vulnerável que precisa obedecer a uma ordem oficial, pública.


Somado a isso, vivencia-se a divisão sexual do espaço. Bourdieu ainda afirma que a concepção que se acomoda no imaginário social naturaliza o espaço público como um espaço do homem. [Falei mais sobre isso neste texto aqui]. Às mulheres cabe o espaço privado doméstico, de reprodução da família (além do medo do estupro que as confina em casa - quando não são estupradas na própria casa).


Como os desastres desmancham as rotinas e, muitas vezes, os meios vitais e sociais necessários à família, e sendo a mulher a encarregada do gerenciamento da rotina doméstica, elas são mais acometidas por “psicopatologias, como estados depressivos ou ansiedades, assim como os transtornos por estresse agudo e por estresse pós-traumático, além de patologias como diabetes do tipo 2, pressão alta, doenças cardiovasculares, respiratórias”, como afirmam Valencio e Siena (capítulo 5).


Além disso, “é a mulher quem, por iniciativa, e maior senso de doação e renúncia [também socialmente construídos], mantém o sentido de segurança para o núcleo familiar quando abalado em desastres”. “Em termos psicossociais, é mais sujeita a apresentar receios de reviver a experiência do impacto, permanecendo em ansiedade, medo e vigília constantes.


Quando têm companheiros, algumas mulheres, após o evento traumático, experimentam a violência pela primeira vez ou suportam maiores níveis de violência de seu companheiro. Diante do sentimento impotência frente à realidade do desastre, dos sentimentos de perda e frustração, aumentam-se as reações de cólera e violência com os familiares mais próximos e mais vulneráveis. Isso, junto à socialização que normaliza a violência de gênero, torna as mulheres as principais vítimas.

Em relação às desigualdades materiais, estando em desvantagem econômica em relação aos homens - já que as mulheres recebem, em geral, 20,5% menos que os homens, e as mulheres negras cerca de 60% menos que os homens brancos -, elas se tornam mais vulneráveis e menos resilientes. Mais vulneráveis à violência doméstica, pois muitas não se separam do agressor por não conseguirem sustentar os filhos sozinha. Mais vulneráveis à violência psicológica, ao se sentirem impotentes. Para além disso, existem, ainda, as famílias monoparentais chefiadas por mulheres, que as coloca em uma sobrecarga ainda maior, visto que são as únicas responsáveis pela gestão financeira e familiar como um todo. São, portanto, menos resilientes socioeconomicamente, pois têm menos condições de se recuperar materialmente do desastre e recuperar o papel de provedora da família.


As desigualdades de gênero são, portanto, potencializadas em decorrência de desastres. Não somente pelo impacto do evento em si, como concluem Freitas e Campos, mas pela forma como decisões são tomadas e pelo próprio modo de organização social. “O compartilhamento de atividades, a criação dos filhos, a obtenção de renda familiar em condições adversas se altera na medida em que uma catástrofe traz custos adicionais para a superação dos danos e perdas ocorridas.


A luta feminista também passa por aqui. E, no que tange a pesquisa científica, abre-se aí uma lacuna e um potencial espaço de trabalho transdisciplinar que dê embasamento às políticas públicas. É urgente e relevante a elaboração de uma agenda de estudos sobre as desigualdades de gênero como forma de evidenciar os impactos negativos provenientes dos desastres socioambientais.


Cabe lembrar que essa não é uma luta de mulheres, mas de todos, todas e todes. Ademais, se o gênero é uma construção social, e se essa construção oprime e mata mulheres - por serem mulheres -, é necessário reestruturá-la. Fica aí o convite para a reflexão...



Talita pode ser contactada pelo email tgantus@gmail.com , está nas redes sociais como @gantustalita e publica textos pessoais em www.talitagantus.info

Sobre a autora acesse aqui.



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