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  • Foto do escritorTalita Gantus

A divisão sexual do espaço

Atualizado: 7 de abr. de 2021

Segundo Berger & Luckmann, a socialização é um processo que começa desde que nascemos até o fim da vida. É como a gente absorve, interioriza a realidade ao nosso redor. Ela gera comportamentos e entendimentos de mundo. Essa socialização ensina padrões, representações de ordem coletiva e individual. Logo, se somos socializados em uma cultura machista e racista, reproduzimos isso mesmo que de modo inconsciente.


Vivemos hoje em uma sociedade patriarcal, na qual o gênero constitui uma estrutura de poder. Os homens se beneficiam dessa estrutura que oprime mulheres. Isso reflete em nossos comportamentos, o que mulheres devem vestir, como devem e como não devem agir, e, de modo mais amplo, em nossas autonomias, permissões, na divisão sexual do trabalho, nos papéis desempenhados na sociedade, e na ocupação dos espaços, sejam eles públicos ou privados.


Doreen Massey traz, em seu livro Espaço, lugar e gênero, o debate de que espaços e lugares, não têm, por eles mesmos, uma relação de gênero, mas eles refletem e afetam o modo pelo qual o gênero é construído e entendido na sociedade.


Em geral, o controle espacial é forçado através de convenções ou simbolismos, como a construção da alegoria imagética da mulher como o “outro”. Simone de Beauvoir discute essa teoria mais profundamente em O Segundo sexo, mas ela é bem representada por “Eva, saída da costela de Adão” (discutido mais amplamente em Ascenção e queda de Adão e Eva, de Stephen Greenblat). Ou como nas representações Renascentistas que focavam na mulher angelical, doméstica, materna e feminilizada. Por isso, como disse Beauvoir: "Não se nasce mulher, torna-se!"


A limitação da mobilidade da mulher, em termos de identidade e espaço, tem em muitos contextos culturais um significado de subordinação. A tentativa de confinar a mulher à esfera doméstica era um controle especificamente espacial e, através disso, um controle social de identidade.


É na instituição familiar que a casa pode servir como dispositivo físico para perpetuar e facilitar os modos de vida. Portanto, ela expressa, através de sua organização funcional, um modelo em pequena escala dos padrões e ações das pessoas, também determinando e orientando rituais e aspectos culturais.


Do mesmo modo, a casa expressa, nos detalhes construtivos e nas estruturas simbólicas, a posição da mulher em relação à sociedade. Ainda que a casa seja um espaço de privacidade aos membros de uma mesma família, está muito mais relacionada à mulher: a dona de casa, a mãe, o centro de estabilidade do núcleo familiar. Quem realmente se importa com o lar e o constrói à sua maneira é ela, pois os cuidados com a casa são suas tarefas.


Anna Openheimmer, em seu trabalho A arquitetura e seus aspectos sociais relacionados com à questão de gênero, traz uma revisão dessas representações arquitetônicas. No período colonial, a gelosia nas janelas tinha a função de ventilar a casa, e, ao mesmo tempo, manter a privacidade. Os jardins se encontravam na parte posterior da casa, onde a cidade se afastava da vista das mulheres. As cozinhas, mais frequentada por mulheres do que por homens, tinham as janelas voltadas para os fundos. Os quartos que se intercomunicavam eram destinados às moças e inviabilizavam a privacidade. O homem resguardava mulher e filhas do mundo exterior, ao mesmo tempo em que estava sempre atento a elas, retirando-lhes a privacidade dentro do conjunto familiar.


A mulher de classe mais abastada era domesticada para ser o reflexo do poder, o objeto contemplativo da sensibilidade feminina. Isso não ocorreu da mesma maneira para as mulheres negras, que sempre estavam nas ruas, no comércio e no trabalho escravo. E, posteriormente e até os dias de hoje, sendo as mais oprimidas nas esferas social, econômica e política.


Arquitetonicamente, por exemplo, o quarto de empregada funciona hoje como uma extensão da exclusão social e racial herdada do período colonial. Por isso é tão importante falar de interseccionalidade no debate de gênero, pois mulheres, negras e trabalhadoras são e sempre foram as mais oprimidas.


Meninas brincam de boneca confinadas em casa, enquanto meninos brincam de carrinho, correm, jogam bola, ocupam, de fato, as ruas. Quando adultos, homens jogam baralho nas praças, frequentam os bares, circulam pelo espaço público, independente do horário.


O aspecto geográfico das cidades se torna um “facilitador” para a vulnerabilidade do gênero mulher: ruas mal iluminadas e desertas, muros cada vez mais elevados e as pessoas se fechando em suas casas. Essa é a lógica inversa de ocupação do espaço urbano, principalmente pelas mulheres. Se a rua é escura e vazia, há um receio em ocupá-la. Se o espaço não é ocupado, ele, então, se mantém vazio. E, assim, a violência se retroalimenta. Como o cenário da foto abaixo que, para uma mulher que caminha sozinha à noite, pode se tornar um filme de terror numa simples volta pra casa.


Como a ausência de iluminação pública eficaz contribui para a vulnerabilidade do gênero mulher. Rua de Parati, Rio de Janeiro, Brasil. (Foto: Talita Gantus)


Nas cidades, construídas pro trabalho, poucos locais são destinados ao lazer, e, menos ainda, ao lazer de crianças. Num país como o Brasil, em que 5,5 milhões de crianças são registradas sem pai, e no qual a maior parte do trabalho parental recai sobre a mãe, não ter espaços de lazer para crianças implica na restrição de espaços de lazer para mulheres. Mais uma lógica de “desocupação” do espaço público.


Ter medo de sair sozinha pelas ruas é uma realidade cotidiana de muitas mulheres. A cada 11 minutos, uma mulher é estuprada. Mas, como pensamos na ocupação do espaço público quando, de cada 3 casos de feminicídio hoje no Brasil, 2 acontecem dentro de casa?!

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