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Cartografia e natureza: uma questão de percepção social?
Atualizado: 7 de abr. de 2021
Mapas são ferramentas essenciais para diversas análises ambientais. Entretanto, eles não são documentos científicos neutros, pois, além de representar, também produzem a realidade. Isso é o que afirma a linha de pesquisa batizada como cartografia crítica.
Enquanto a cartografia é o ramo científico responsável pela normatização das metodologias e otimização das técnicas na produção de mapas, o termo crítico refere-se à capacidade em compreender as relações sociais e políticas intrínsecas à produção dos mapas. É importante lembrar que, segundo Crampton e Krygier, "uma crítica não é um projeto para encontrar falhas, mas um exame dos pressupostos de um campo de conhecimento. Seu propósito é entender e sugerir alternativas para as categorias de conhecimento que usamos".
Nesse sentido, algumas perguntas são frequentes: Como e quem faz os mapas? Quais elementos são representados? Qual a função desses documentos? Em qual contexto eles são produzidos?
Nesse texto vou explorar os mapas que representam a vegetação. De maneira geral, podemos identificar dois grandes momentos da cartografia da vegetação brasileira:
(1) as expedições naturalistas e científicas, a partir do século XVIII até a metade do século XX;
(2) o Projeto Radam e, posteriormente, a utilização de imagens de satélite (a partir dos anos 70).
Em cada um desses momentos, diferentes metodologias, tipologias e técnicas foram empregadas para representar a vegetação, e, por isso, apresentam resultados distintos. Se por um lado isso é fruto do notável desenvolvimento tecnológico e científico, por outro representa uma transformação do paradigma da produção cartográfica. Vale ressaltar o ponto em comum nos dois momentos: a ausência da perspectiva das populações tradicionais e originárias na compreensão dos elementos cartografados.

Floresta Nacional Tapajós, Pará - área que exibe uma vegetação ímpar e é habitada por várias comunidades tradicionais, ribeirinhas e indígenas. (Foto: Bárbara Zambelli)
Dois momentos, um ponto em comum
As expedições naturalistas ocorreram em diversos biomas dos Brasil. Essas viagens de estudos buscavam classificar as diferentes regiões a partir das características botânicas e florísticas. O trabalho de Carl Friedrich Von Martius (1858), gerou o primeiro mapa dos biomas a nível nacional. Sua metodologia influenciou muitos trabalhos de cartógrafos brasileiros, e mostrou a importância do trabalho de campo para estudos ambientais. Apesar do massivo trabalho no terreno, pouco se encontra na literatura sobre a intersecção entre especialistas e populações tradicionais ou originárias.
A partir da década de 70 esse distanciamento toma corpo. Preocupados em estimar a extensão e o conhecimento acerca dos recursos naturais, a partir de interesses econômicos e políticos, o governo militar cria o Projeto Radam. Esse projeto contou com a primeira metodologia de mapeamento remoto sistemático no Brasil, através de aerofotografias feita por câmeras embarcadas em aviões. Não demorou muito para que as primeiras imagens de satélite chegassem ao Brasil (a partir de 1970) e começassem a integrar as metodologias empregadas na cartografia oficial brasileira.

Com a corrida tecnológica do pós-guerra, inúmeros programas espaciais surgiram no mundo, sobretudo nos países do norte global. Esses programas de interesses militares foram, progressivamente, tornando-se ferramentas indispensáveis para o controle territorial. A partir dos anos 70, alguns programas com fins civis, como LandSat e SPOT, consolidaram-se como sistemas de monitoramento terrestre global, permitindo a captação semanal ou diária de imagens coloridas com uma boa resolução. Essas imagens passaram a ser utilizadas na composição dos mapas de vegetação. Essa prática não significou apenas uma mudança da metodologia, mas também transformou as relações de trabalho e produção da cartografia nacional.
Na medida em que essas imagens passaram a ser utilizadas pela a administração pública, cresceu a necessidade de infraestrutura para seu armazenamento, manipulação e utilização. Assim, o Brasil passou a investir no setor da informática, desenvolvendo programas de modernização e de técnicas para o processamento de dados (veja a história do departamento de processamento de imagens no (DPI/INPE). A partir daí, surge o que, pessoalmente, denomino como a hegemonia da Geomática.
Desde então, o mapeamento é realizado exclusivamente por imagens de satélite. Nesse contexto, os trabalhos de campo foram se tornando ferramentas complementares ao trabalho de mapeamento remoto realizados nos escritórios das instituições públicas e universidades brasileiras. O contato dos especialistas com o espaço mapeado foi sendo paulatinamente substituído por algoritmos de classificação, processamento de dados e análise visual à distância. Se a consideração das percepções sociais das populações tradicionais ou originárias já não era evidente em tempos de expedições naturalistas, o mapeamento remoto afastou ainda mais o especialista do campo, antagonizando as percepções científicas das percepções sociais. Apesar dos mapas brasileiros contarem com um quadro metodológico cientificamente rigoroso para a classificação dos nossos diferentes biomas, não é comum em nenhum deles o enfoque ou a utilização de metodologias sobre a percepção das populações tradicionais e originárias sobre a “cobertura vegetal”.
Natureza e ser humano: uma questão de percepção
No caso das populações tradicionais, dos pequenos agricultores ou dos grupos indígenas, existem distintas formas de significar a natureza, às vezes não havendo a separação dicotômica entre o ser e a natureza. Como exemplo podemos citar os trabalhos do antropólogo Eduardo Viveiro de Castros, onde ele trabalha a temática do perspectivismo ameríndio e do multinaturalismo. Em seu livro A inconstância da alma selvagem ele mostra, por meio de diversas pesquisas, que os povos ameríndios da Amazônia apresentam um universo cosmológico da floresta muito rico de significados.
Falando sobre a influência da ocupação indígena na Amazônia, o autor cita: “Sabia-se havia bastante tempo da diferença entre a várzea e a terra firme. Mas, a diversidade pedológica, florística e faunística não cabe nesta oposição simples; sobretudo não é possível continuar a subsumir na categoria geral que caracteriza cerca de 98% da região, uma quantidade de ecossistemas fortemente heterogêneos (…) isso porque acumulam-se evidências que várias zonas foram objeto de ocupação pré-histórica intensa”, explicitando a insuficiência das categorias científicas tradicionalmente utilizadas na classificação da vegetação, o autor explica: “Em outras palavras, boa porção da cobertura vegetal da Amazônia é o resultado de milênios da manipulação humana.”
Apesar dos diferentes biomas brasileiros terem uma relação direta, permanente e histórica com as diferentes ocupações humanas que nela habitam, não é comum encontrar metodologias de trabalho cartográfico que abordam tal questão. Ou seja, a simples presença, a condição ontológica, bem como as percepções e o conjunto de significados desses grupos sociais não são consideradas nas metodologias institucionais de mapeamento da vegetação. A cartografia brasileira, baseada pura e simplesmente na ciência e na tecnologia, permite, historicamente, a omissão da riqueza de significados dentro dos diferentes biomas.

Reserva Extrativista Tapajós - Arapiuns, Pará. (Foto: Bárbara Zambelli)
Inclusão e transversalidade: a cartografia crítica como política de conhecimento
O mapa deve ser considerado mais do que um mero elemento gráfico, baseado em uma boa distinção lógica dos objetos (linguagem cartográfica, simbologia, tipologia, design), mas também um elemento carregado de significações sociais, desigualmente distribuídas ao longo do tempo e do espaço. Caso queiramos criar um modelo de representação integral e transversal que seja efetivamente participativo e social, a ciência e a tecnologia não devem ser nossas únicas ferramentas.
Simplesmente porque essas duas não conversam com a diversidade de cosmologias propostas por outros grupos sociais, como os indígenas, por exemplo. Da forma como são feitos hoje, os mapas dos biomas brasileiros têm um caráter colonizador e autoritário, não a serviço da proteção dos povos da floresta, ou da conservação dos ecossistemas e coberturas vegetais de forma qualitativa, mas para interesses de controle político e econômico, meramente quantitativos.
Caso seja de interesse comum a criação de políticas ambientais verdadeiramente representativas, é necessário que nossos mapas representem de fato a diversidade dos significados e cosmologias existentes em cada um dos biomas brasileiros.
Já existem projetos nesse sentido que devem ser explorados, encorajados e institucionalizados. Não somente a cosmologia indígena, mas também tradicional (ribeirinhos, geraizeiros, seringueiros, pequenos agricultores, etc.). Essa aproximação é de suma importância, visto que os elementos representados pelo mapa podem ganhar sentidos e valores sociais, ressignificando e enriquecendo as categorizações, que são posteriormente utilizadas para a administração pública e a gestão ambiental. Isso não significa que devemos repudiar as tecnologias de mapeamento, mas sim que devemos agregá-las com a diversidade de conhecimentos socioculturais até então omitidos pela ciência e pela tecnologia positivista.
O uso dos mapas, bem como qualquer outro tipo de modelo, acarreta uma série de questões relativas ao controle político do Estado. Como afirmam Crampton e Krygier, “não somente o Estado deve ser o produtor de assertivas de poder e conhecimento, mas outros grupos também deveriam fazer afirmações concorrentes” ou complementares. Os mapas devem ser compreendidos como conhecimento, e, portanto, a cartografia crítica deve ser incorporada como a política do conhecimento. Nesse sentido, é preciso rever as bases da cartografia a fim de caminharmos no rumo de uma inclusão social e representação fidedigna daquilo que entendemos como natureza.
[Nota da editora: Esse artigo expressa a opinião pessoal do autor. Essas opiniões não necessariamente refletem um posicionamento oficial d’a_Ponte]

Alex de Sá é geógrafo formado pela Universidade Federal de Santa Catarina. Durante sua graduação, foi bolsista do CNPq na University of Adelaide, Austrália. Possui mestrado em Sensoriamento Remoto e Geomática pela Université Paris I – Panthéon Sorbonne. Atuou em diversos projetos ao longo da carreira acadêmica, trabalhando com temáticas relacionadas à educação, gestão ambiental e urbana. Em seu último projeto acadêmico, participou do grupo de pesquisa franco-brasileiro “Agropower” (CNRS) responsável por estudos da legislação ambiental brasileira. Integra o grupo de debates interdisciplinares sobre Tecnologia e Território (T&T), formado por especialistas de várias partes do Brasil. Atualmente vive em Paris, onde trabalha como analista de sistemas de informação geográfica no setor de energias renováveis. Tem interesse na cooperação transdisciplinar para a produção de estudos e reflexões sobre questões socioambientais e a formulação de políticas públicas participativas.