Talita Gantus
Cenários de uma pandemia no espaço urbano
Atualizado: 7 de abr. de 2021
Os impactos da pandemia não são uniformes nem homogêneos para todos, e as condições que as pessoas têm de lidar com eles também não. Com isso, qualquer estratégia de combate, de prevenção ou de atendimento à covid-19 precisa ser pautada pelas condições materiais específicas de cada local de ação.
Isso posto, a reflexão a ser levantada aqui é: como as geociências podem contribuir para mitigar os efeitos da covid-19 nas cidades? Para isso, dividi essa análise em duas partes: o presente artigo apresenta a contextualização do problema e o próximo abordará a tomada de ações.
Para que partamos de um lugar comum nessa reflexão, coloco aqui algumas premissas: (a) ter em mente que o direito à moradia digna reside na Constituição de 1988 e que, segundo ela, propriedades devem cumprir sua função social, e (b) compreender que existem consequências da segregação socioespacial no espaço urbano.

Morro Santa Marta, Rio de Janeiro. (Foto: Bárbara Zambelli)
Pessoas que vivem nas ruas, nas periferias ou nas favelas estão muito mais desprotegidas em relação à doença e também aos seus efeitos econômicos. Já é claro que a diminuição do número de novos casos e a maior capacidade de absorção pelo sistema de saúde depende da máxima redução de circulação de pessoas nas cidades.
Diante desse cenário, milhares de famílias estão ameaçadas de despejos e remoções forçadas. Os deslocamentos dessas pessoas, em situação já precária, colocam-nas ainda mais expostas ao vírus, ao compartilharem habitação com outras famílias e, em casos extremos, ao irem morar na rua, somando-se às mais de vinte e quatro mil pessoas nesta situação.
Para solucionar esse problema, organizações sociais e movimentos de direito à moradia estão em campanha por moratórias nos despejos, nas execuções hipotecárias e nas remoções. Em alguns lugares do mundo, como nos EUA e na França, medidas nesse sentido já estão sendo tomadas.
Na Região Metropolitana de São Paulo, mais de dez mil famílias perderam suas casas no último ano e mais de duzentas mil estão ameaçadas de remoção. Visto isso, institutos e pesquisadores das questões urbanas já se posicionaram apelando por providências, solicitando que o sistema de justiça suspenda o mais rápido possível o cumprimento de despejos, reintegrações de posse e imissões na posse que resultem em remoções.
Outra medida de prevenção da covid-19 é a higienização das mãos, das compras e etc. Por consequência, populações sem acesso à água e ao saneamento básico não têm como cumprir as práticas sanitárias, recomendadas pelas autoridades, para achatar a curva de expansão da doença no Brasil. No município de São Paulo, quase 340 mil pessoas sofrem com interrupções de abastecimento de água, 85 mil ainda não têm acesso a este serviço e existem mais de 11 mil domicílios sem banheiro exclusivo.
Em contextos como esse, os municípios podem e devem exigir ações por parte das companhias de água, sejam elas municipais, estaduais ou privadas. Pesquisadoras da área apontam algumas medidas de emergência que poderiam garantir um abastecimento pouco mais universal de água, como: (i) revisão dos procedimentos de redução de pressão nas redes, considerando que, com mais pessoas em casa, os picos de consumo mudaram de horário; (ii) ampliação da reserva de água em pontos críticos já conhecidos pela empresa de saneamento e/ou mapeados pela sociedade; (iii) construção de reservatórios para acesso emergencial à água potável em áreas onde o serviço público ainda não está disponível; (iv) distribuição de água por meio de caminhões pipa, com garantia de acesso à água de qualidade; (v) instalação emergencial de torneiras e banheiros em espaços públicos.
No Brasil, temos um déficit habitacional de 7,5 milhões de moradias, há 4 milhões de famílias em domicílios sem banheiro, 35 milhões vivendo sem acesso à água tratada e 100 milhões sem rede de esgoto (levando em consideração que a população do Brasil é de 211 milhões, isso corresponde a quase metade das pessoas sem acesso à rede de esgoto).
A descrença na crise climática, acompanhada da falta de credibilidade na ciência, e a crise econômica e política que as civilizações vivenciam desde as últimas décadas, se deram de forma lenta no cotidiano atribulado das cidades. Mas a pandemia do coronavírus não permite fingimentos, e nos revela que somos capazes de promover mudanças em tempo recorde. Para isso, precisamos estar atentos para não sairmos “quase os mesmos” e sem resolver os problemas estruturais que se agudizam em momentos de crise.
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