Talita Gantus
Ciência a serviço de quem?
Atualizado: 6 de mai. de 2021
O período áureo para a produção científica do Brasil aconteceu entre 2003 e 2010, época em que o investimento total em Ciência e Tecnologia saiu de 2,5 para 10 bilhões de reais. O país caminhava para um investimento de 2% do PIB em Ciência, Tecnologia e Inovação. A título de comparação, a China, grande potência em ciência e tecnologia hoje, investe em torno de 2,5%, os países mais ricos da Europa, Estados Unidos e Israel investem acima de 3%, e o Brasil, em 2010, investia cerca de 1,7 e 1,8% do PIB, tentando atingir a marca de 2%. De lá para cá, o investimento despencou, e essa queda se intensificou ainda mais depois da PEC do teto de gastos que congelou por 20 anos os investimentos em saúde e educação. Aliás, os frutos dos impactos negativos estamos colhendo neste momento da pandemia de Covid-19, em que vemos o importante papel que a ciência exerce no desenvolvimento humano das nossas sociedades. Afinal, as vacinas são produzidas pela ciência e todas estamos sonhando com o dia em que viraremos “jacaré”, agradecidas por existirem cientistas.

Biblioteca de pesquisa do Instituto Eschwege, espaço de ciência referência no ensino de mapeamento geológico. Diamantina, MG. (Foto: Talita Gantus)
Segundo dados da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, vinculada ao MEC), os pós-graduandos estão presentes em 90% das pesquisas realizadas no país, ou seja, não há pesquisa no Brasil sem a pós-graduação. Mas as condições em que essas pesquisas são realizadas não são as melhores. Seja no que diz respeito à remuneração (R$ 1.500 e 2.200 para mestrado e doutorado, respectivamente), que, além de baixíssima, não garante direitos trabalhistas como férias remuneradas, 13° e seguro desemprego... Seja em relação aos prazos, que nem sempre dialogam com a realidade de muitos pesquisadores, como a falta de recursos para trabalhos de campo e compra insumos que acabam atrasando o andamento da pesquisa… Seja em relação à incerteza pós defesa de doutorado, visto que a taxa de desemprego de doutores no Brasil vem crescendo e os concursos públicos e as bolsas de pós-doc para absorver esses trabalhadores no mercado estão cada vez mais raros. Nesse texto aqui eu abordo com mais detalhes a fatídica realidade dos produtores de ciência brasileira: as/os pós-graduandos/as.
Fazer ciência no Brasil não é fácil, imagino que já concordamos nesse ponto. Mas aqui, gostaria de discutir um outro grande gargalo na produção de ciência, tanto nacional quanto internacional: a indústria acadêmica.
A Springer é uma editora alemã fundada em 1842. Desde o século 19 eles já eram especialistas em publicar artigos científicos. Robert Maxwell, um ex-militar britânico combatente na 2ª Guerra Mundial no exército alemão, ao perceber que a ciência iria bombar [licença pro trocadilho] no pós-guerra, acionou sua rede de contatos e rapidamente se tornou distribuidor oficial de artigos científicos da Springer no Reino Unido e nos EUA. Os governos, afinal, já tinham percebido que, quanto maior o avanço nos laboratórios, maior a vantagem no front (da bomba atômica aos sonares - estes possibilitaram, inclusive, investigações indiretas do subsolo terrestre, que contribuíram para o desenvolvimento das geociências).
Além disso, era óbvio a Maxwell que os cientistas britânicos precisariam cada vez mais de notícias sobre a ciência que estava sendo feita em outros países – a começar pela própria Alemanha, onde ele residia. A sacada foi tão lucrativa que em 1951 ele já tinha capital e contatos para fundar sua própria editora, agora em território britânico – a Pergamon Press. Maxwell prosperou, criou um império midiático e passou décadas nas listas de homens mais ricos da Inglaterra.
Mas o grande legado do bilionário Maxwell não foi exatamente a Pergamon, e sim a criação de um modelo de negócios extremamente lucrativo. E que, até hoje, ainda dá um belo dinheiro: a editora Elsevier – que comprou a Pergamon em 1991 e hoje é a maior editora de literatura científica do planeta – lucrou US$ 1 bilhão sobre um faturamento de US$ 2,7 bilhões, margem de lucro de 36,7%, maior que o do Google, que é de 26,5%.
Na ciência, não basta descobrir, é preciso contar aos outros o que você descobriu. É isso que permite a circulação de ideias, resultados, métodos, referências, lacunas já preenchidas e a preencher. Até os caminhos que obtiverem resultados negativos também são importantes para a construção da ciência, afinal, se um/a cientista refuta a hipótese da sua pesquisa, a comunidade acadêmica fica ciente de que é necessário propor um outro caminho para corroborar a mesma hipótese. Um jogo de erros e acertos.
As primeiras revistas científicas, lá no século 18, não tinham fins lucrativos. Mas, com o avanço do capitalismo e sua sede insaciável de lucro e acumulação, esse nicho se tornou um grande potencial.
Atualmente, a atuação dos/as pesquisadores é avaliada com base nos artigos e livros publicados em periódicos e editoras de alto impacto. Única e exclusivamente. Então, você, acadêmico que usa parte do seu tempo para promover divulgação científica ou em projetos de extensão: para essa comunidade, você não é um/a cientista de renome. A não ser que você consiga fazer tudo isso ao mesmo tempo em que publica artigos A1, e ainda cuida dos afazeres domésticos, da família, da saúde, da alimentação, e tem a pachorra de dedicar um tempo para o lazer e a leituras diversas que contribuíram para a transdisciplinaridade da sua pesquisa. À você que consegue exercer com maestria o que a universidade brasileira se propõe fazer - ensino, pesquisa, divulgação e extensão -, meus parabéns! Um caso raro!
Para fazer essas avaliações de produtividade “qualitativa”, a comunidade acadêmica adotou basicamente dois critérios (quantitativos?): a quantidade de artigos científicos publicados em revistas e o número de vezes em que esses artigos são citados em outros artigos – o que, em teoria, é uma evidência de que o trabalho foi relevante e influente.
Os cientistas não querem lucro, só divulgação aos seus pares. Aqui, uma explicação: divulgação científica é a comunicação da ciência produzida à comunidade em geral, em linguagem acessível, seja por meio de blogs (como este), jornais, podcasts, etc. A divulgação entre os pares, que seriam os pesquisadores daquela temática, é feita em revistas e periódicos acadêmicos, e são nesses espaços que comunicamos nossos resultados por meio de artigos científicos e encontramos possíveis apontamentos para pesquisas futuras.
As/os autores desses artigos entregam o material de graça, cedendo os direitos autorais e não recebendo nada por isso. Na outra ponta da cadeia, há as universidades, que não têm outra opção a não ser pagar o que as editoras pedem para ter acesso às pesquisas mais importantes (afinal, uma/a pesquisador só consegue trabalhar se puder ler os trabalhos já publicados - inclusive, é nisso que consiste a revisão bibliográfica exigida em trabalhos acadêmicos). Um salve pra Alexandra Elbakyan, criadora do SciHub, “removendo barreiras do caminho da ciência”.
Essa lógica consiste em um modelo de negócios ímpar: o dono da editora de periódicos científicos recebe conteúdo de graça e vende a um público disposto a pagar muito. E o que torna ainda mais lucrativo é o fato de que os revisores desse material - os pares - não recebem para fazer a revisão. Apenas o prestígio de trabalhar de graça para uma grande editora que explora mão de obra e poder inserir isso no currículo. Chamo atenção aqui ao fato de que não se trata de ceder tempo de vida contribuindo para a produção e circulação de conhecimento que leva a um desenvolvimento social. Não, até porque, nada é de graça nesse meio: você paga para publicar se a revista for de livre acesso, se não for, você paga para ter o acesso. A única coisa gratuita nesse sistema é a força de trabalho de quem escreve e de quem revisa. Ora, não seria essa extração de lucro em cima da força de trabalho aquilo que Marx chamou de mais-valia?!
E o que é ainda mais chocante. Lembra que no início do texto eu trouxe dados sobre o quanto do PIB dos países é investido na produção da ciência?! São exatamente esses resultados, atingidos graças aos recursos públicos oriundos do seu imposto - e que permite o desenvolvimento de vacinas, por exemplo -, que estão sendo mercantilizados. É um negócio de baixo risco: pegar de graça do governo [que financia as pesquisas] para vender de volta para o governo [que financia as universidades]. Não fosse o suficiente, esse sistema é incentivado pela criação das grifes da ciência: periódicos muito seletivos que só publicam a nata das pesquisas, majoritariamente do Norte-Global (colonialidade do saber?). Sair em títulos como Cell, Nature ou Science dá visibilidade e é bom para a carreira dos cientistas. A Nature e outras revistas do mesmo grupo editorial terão a possibilidade de deixarem seus artigos abertos para todos os leitores, e não só aos assinantes, mediante o pagamento de uma taxa básica de até 9.500 euros por artigo, cerca de 58 mil reais. Isso só aumenta o fosso entre países “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos”. Quem recebe em real enfrenta grandes dificuldades para arcar com qualquer coisa em euro ou em dólar, uma inscrição em congresso, que seja.
Pois bem, alguns devem estar se perguntando: mas porque não boicotamos esse sistema e publicamos apenas em editoras de livre acesso que, ou não cobram para publicar, ou cobram uma taxa acessível?
Como a classificação de um cientista (professor/a pesquisador/a) no CNPq define quanto dinheiro ele pode receber para seus projetos, e consequentemente para seu grupo de pós-graduandos que precisam financiar sua pesquisa (lembremos que a bolsa é para pagar moradia e alimentação - e ainda a duras penas), surge a mentalidade do “quanto mais, melhor”. A quantidade bruta de artigos passa a valer mais do que a criatividade e a originalidade de cada um.
Os pesquisadores, sob pressão, se preocupam mais em bater metas do que em produzir boa ciência. O que, convenhamos, nesse momento de pandemia se torna uma forma de negacionismo. Ninguém, abalado psiquicamente com essa situação que parece nunca ter fim dado a ingerência desse governo, consegue manter a produção acadêmica e a vida em dia. Se você consegue, ótimo, um outro caso raro! Uma boa pesquisa está diretamente relacionada ao bem estar de quem a executa. Tente ler um artigo ou escrever alguns parágrafos quando está ansioso e falhe miseravelmente se culpando no final do dia.
Entramos em um looping infinito: precisamos publicar em periódicos renomados para termos pontos o suficiente no nosso currículo e assim concorremos a editais e a vagas de professor/a, pesquisador/a e em seleções de bolsas de fomento.
Para piorar a situação, periódicos brasileiros que teriam a possibilidade de crescer internacionalmente, visto que a ciência produzida no Brasil, mesmo com investimentos irrisórios, é de altíssima qualidade, boicotam os próprios cientistas brasileiros ao cobrarem taxas que não condizem com a situação financeira dos pós-graduandos. O Brazilian Journal of Geology, por exemplo, cobra uma taxa de R$1.500 para cada artigo publicado. O mesmo valor de uma bolsa de mestrado!
Somado a isso, entra em cena o universo dos congressos científicos, também importantes meios de circulação entre os pares. O Congresso Brasileiro de Geologia, que será realizado virtualmente este ano, assumiu a singela taxa de inscrição de R$1.152 para pós-graduandos. À quem quer apresentar sua pesquisa nesse congresso, após a submissão e aceite do resumo, é necessário efetuar a inscrição e pagar esse valor abusivo. A lógica é a mesma das editoras: os revisores do resumo não são remunerados.
Ciência à serviço de quem?
As perguntas que ficam: são os próprios cientistas que atravancam o desenvolvimento equitativo da ciência ao estabelecerem métricas distorcidas de produtividade? Ou é o modo de produção e a ideologia capitalistas e a busca infinda de lucro, atrelado ao desenvolvimento científico, que têm mercantilizado [assim como faz com tudo aquilo que toca] o saber?
Como diria minha analista: quem sabe um pouco dos dois?!

Talita pode ser contatada pelo email tgantus@gmail.com, está nas redes sociais como @gantustalita e publica textos pessoais em www.talitagantus.info
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