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Clima de apreensão não basta

por Gabriel Noronha


Onde é a pior seca dos 91 anos, aumento da tarifa e porquê devemos buscar outros responsáveis pela crise hídrica que não sejam as oscilações climáticas.


Leito do rio Paraná (Sebastian Lopez Brach, 2021 - foto cedida pelo autor).


Neste mês de agosto, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) emitiu um alerta de que não se observaram níveis tão baixos de reservatórios de hidrelétricas em 91 anos. Entretanto, o anúncio foi recorrentemente tratado, tanto em mídias tradicionais quanto alternativas, como “a pior seca dos últimos 91 anos”, manchete notavelmente equivocada. Ainda que se tratem de notícias feitas para sensibilizar o público, esse tipo de malabarismo estatístico reforça diversos mitos sobre o clima e não direciona o teor crítico necessário neste momento de desestruturação de políticas socioambientais.


Sem revelar a distribuição espacial destes reservatórios atingidos pela anomalia pluviométrica, a crise hídrica torna-se um consenso discursivo entre os brasileiros, à despeito da maior cheia do Rio Negro em 188 anos de medição, deixando a metrópole amazônica vastamente alagada. Contraria-se, também, o cessar da maior seca enfrentada no semiárido brasileiro nas últimas décadas, entre 2013 e 2018.


Então, vamos à primeira questão: onde podemos afirmar que existe uma seca excepcional?

O Monitor de Secas da Agência Nacional de Águas, modelo de monitoramento uniforme de secas, tem sido ampliado para todo o país. (Fonte: Monitor de Secas - ANA, 2021)


O Sistema Interligado Nacional é composto por quatro subsistemas. Os subsistemas do Sudeste/Centro-Oeste e Sul estão em 18% e 25% da capacidade dos reservatórios, respectivamente, muito inferior ao patamar de 46% do subsistema do Nordeste ou 66% do subsistema do Norte, segundo dados da ONS. O volume da maioria dos reservatórios nas bacias do Paranaíba, Paraná e Iguaçu está próximo de 10% de sua capacidade, em iminência do chamado “volume morto” (quando o nível do reservatório fica abaixo dos canos de captação e, no caso de reservatórios para usinas hidroelétricas, com vazão insignificante para geração de energia). Uma inédita e persistente condição de racionamento se instalou em Curitiba ultimamente e as célebres cataratas de Iguaçu estão à fio d’água, dramático indicador visual da escassez hídrica.


A seca que atinge em cheio o estado de São Paulo e o “temperado” Sul do Brasil contraria aqueles que entendem o clima como fenômeno estático e possível de ser traduzido em médias. No imaginário predominante, o Brasil é um país abundante em águas, com exceção da região dita Nordeste, que lida invariavelmente com a seca. Entretanto, a excepcionalidade é tão importante de ser estudada como a habitualidade nos estudos sobre o clima, e como sugere Zavattini (p. 182, 2015) o pesquisador-educador deve prestar atenção para “normatizar a terminologia em climatologia e, jamais, normalizar o(s) clima(s)”. A entrada de frentes frias provenientes das médias latitudes adentro da aplainada bacia do rio da Prata/Paraná proporciona precipitações até mesmo no auge da estação seca, o que tradicionalmente levou estudiosos a classificarem o clima nessas regiões interioranas do Paraná, Mato Grosso do Sul e São Paulo como úmido a superúmido. Porém, as chuvas de verão, que são as responsáveis pela maior parte da precipitação anual, estiveram copiosamente abaixo da média esperada.


Devido aos avanços no monitoramento e divulgação em tempo real, os extremos climáticos têm atraído cada vez mais a atenção pública, que anseia a exatidão da previsão meteorológica semanal para tamanho dinamismo e complexidade que envolvem a variabilidade climática. Nesse literal mar de incertezas emergem alguns conhecidos agentes moduladores das circunstâncias vigentes, entre eles o El Niño Oscilação Sul – ENOS, a principal fonte de variabilidade interanual do clima no Brasil (Grimm, 2009).


A inquieta atmosfera terrestre está em constante esforço para balancear o excesso de radiação solar, que lhe adentra entre os trópicos, e o déficit, observado nas regiões extratropicais. Os oceanos absorvem e liberam mais vagarosamente a energia pois a maior parte dela é consumida nas trocas de estado físico (calor latente) e não na temperatura (calor sensível). Portanto, nossos mares estão substancialmente menos sujeitos a variações de temperatura que as massas de ar. Se, por um lado, as mudanças térmicas (e salinas) no estado dos oceanos são menos repentinas e violentas que as mudanças no estado da atmosfera, o efeito de suas anomalias segue por muito (muito!) tempo influenciando as mesmas áreas, e são portanto âncoras da variabilidade climática em nosso planeta.


Desde o inverno de 2020 estamos sob o efeito da La Niña (LN). Em oposição ao El Niño (EN), a LN se trata do resfriamento das águas superficiais do Oceano Pacífico Equatorial, causado pela maior força com que as águas frias são transportadas pela corrente fria de Humboldt. Por consequência, há menos evaporação e calor liberado, o que acaba limitando a convecção nesse setor, isto é, dificultando a elevação das parcelas de ar e inibindo a precipitação. O “vácuo” em altitude produzido por este ar descendente sobre o Pacífico Leste atrai justamente as camadas de ar da vizinhança, em especial do oeste do Pacífico e da Amazônia brasileira que, em contraste, induz mais convecção e mais chuva. Esse efeito gangorra nas chamadas células de Walker se estende à toda superfície planetária, dada a magnitude do oceano Pacífico e do efeito produzido pelas anomalias da temperatura do mar, que ficam ancoradas por meses.

Simplificação das interações oceano-atmosfera sob condições de La Niña. Em azul temperaturas da superfície do mar abaixo da média e em laranja mais elevadas (Fonte: National Oceanic and Atmospheric Administration - NOAA, 2016).


Concisamente, episódios de EN estão associados a chuvas volumosas no Sul do país e a estiagem no Norte, enquanto a LN promove um cenário reverso, como observado desde a segunda metade de 2020. Ressalta-se que outras importantes oscilações, como a temperatura do Oceano Atlântico Tropical e a Corrente Malvinas-Brasil, têm notável influência na qualidade de chuvas no Nordeste e no Sul do Brasil, respectivamente. Por outro lado, o Sudeste vive uma imprecisão maior dada a posição intermediária entre essas distintas regiões. Mas afinal, a crise hídrica tem uma relação causal única com as oscilações climáticas OU devemos elencar outros fatores?


Fotografia panorâmica do Paraná Viejo, braço do rio Paraná, nas proximidades de Rosário - Argentina. A seca histórica deste rio é alvo de estudo do fotógrafo Sebastian Lopez Brach (imagem cedida pelo fotógrafo).


Se, por um lado, as manchetes atribuem imediatamente as raízes do problema à escassez de chuva “nunca antes vista”, para um quadro constatado na bacia do Paraná, por outro lado, esta região é uma das mais alteradas de nosso país no que diz respeito ao uso do solo pelo latifúndio e o agronegócio.


Por mais que seja atribuída a influência antrópica às mudanças climáticas, o clima é responsabilizado desproporcionalmente se comparado a outros relevantes fatores ambientais, como solos e hidrografia, sujeitos ao impacto da desigualdade fundiária e da cadeia produtiva predatória.


Historicamente, a Bacia do Paraná foi recoberta pela floresta estacional semidecidual (“mata atlântica do interior”) até o “Mato Grosso de Goiás”, onde compunham originalmente mosaicos quase indivisíveis com o cerradão. A aptidão agrícola excepcional dos solos argilosos (terra roxa) oriundos da Formação Serra Geral foi prelúdio da expansão avassaladora de um dos parques agropecuários mais produtivos do Brasil e do mundo. Com o incremento da mecanização e fertilização da produção, a fronteira agrícola avançou progressivamente sobre os solos distróficos e cerrados, no interflúvio da Bacia do Paraná com as demais bacias, no Brasil Central. Nestes locais a estiagem geralmente perdura por 5 meses.


Entretanto, a retirada de água dos corpos hídricos superficiais e aquíferos está cada vez maior se comparada com a percolação e infiltração da chuva para o subsolo. A recarga dos aquíferos e, consequentemente, dos mananciais está comprometida. A água tem sido alvo de disputa entre a presença ostensiva da irrigação por pivôs centrais e extração de minerais metálicos e terras raras entre Goiás e o Noroeste de Minas. Diante de um novo ciclo de valorização das commodities, é de se questionar o percentual irrisório dos lucros das empresas que tem sido reinvestido na proteção e restauração florestal dos biomas impactados e na recarga gerenciada de aquíferos, o que poderia favorecer a retenção de águas nas cabeceiras e a manutenção dos reservatórios subterrâneos.


Concentração de pivôs centrais na localidade de Brejinho, no município de Paracatu/MG (Fonte: Google Earth).


Somadas às terras pisoteadas e degradadas pela pecuária extensiva, a sucessão desastrosa de atividades econômicas está trazendo um subestimado passivo ambiental ao país. E o lembrete chega à casa de todos os brasileiros nesta primavera de 2021, na conta de energia elétrica. Mais um peso inflacionário ao lado dos itens da cesta básica, semelhante reflexo dos interesses do agronegócio. E até onde vai a insatisfação do trabalhador? E, enquanto ambientalistas, conseguimos resumir toda a trama debatida acima ao desmatamento da Amazônia e ao aumento das concentrações de CO2 na atmosfera?


É cada vez mais consensual entre especialistas do clima que a supressão da Floresta Amazônica está diretamente ligada à diminuição da precipitação nas séries históricas mais recentes nos limites do bioma. Todavia, as consequências do desmatamento nas Zonas de Convergência de Umidade e do Atlântico Sul (ZCOU e ZCAS) são bastante inconclusivas. Recentemente popularizadas como rios voadores, as ZCAS e ZCOU são mecanismos produzidos por sistemas atmosféricos em altitude, pela entrada da pulsante convergência intertropical oriunda do Atlântico e desvio da mesma na montanhosa Cordilheira dos Andes. Não é plausível afirmarmos que a falta de chuva em Curitiba, como no verão de 2020, foi justa consequência do desmatamento amazônico, quando nessa mesma estação chuvosa Belo Horizonte bateu recorde centenário de precipitação para o mês de janeiro, superior a 1000 mm. A atmosfera possui caráter compensatório, e naquele verão os episódios de convergência da umidade vinda da Amazônia estavam deslocados para Norte da posição climatológica média, direcionando repetidas vezes a “esteira de convecção profunda” ao Espírito Santo, ao sudoeste baiano e à metade Nordeste de Minas.

Valho-me também do Relatório de Mudanças Climáticas brasileiras (PBMC), que indica elevação média da temperatura de 2°C em quase todo território brasileiro e, por um lado, menos chuva para a metade Nordeste do Brasil e, por outro lado, aumento da precipitação no Sul do Brasil. Porém, para nossa sorte, não significa que todos anos hidrológicos seguirão esse padrão. Portanto, existe tempo hábil para planejar e alocar recursos de combate aos riscos. O mesmo Sudeste brasileiro que sofre com enchentes e inundações em parte do verão, não se encontra preparado para os anos de veranico. Era de se esperar que a região mais desenvolvida em termos de capital tecnológico tivesse corrido atrás do atraso depois do apagão de 2001 e da crise hídrica na maior cidade do hemisfério sul em 2014. Todavia, isto não ocorreu.


O Brasil investiu muito timidamente na diversificação da matriz energética na última década se comparado com outros países, inclusive em desenvolvimento. Ainda assim, a ampliação de parques eólicos, principalmente no Nordeste brasileiro, fez com que a participação desta fonte dita renovável saltasse de 0,7% em 2010 para 4,8% da matriz elétrica brasileira em 2020. O mais interessante é que a energia eólica é relativamente complementar à potência hidrelétrica. Os constantes ventos alísios, responsáveis pelo tempo estável e seco, que sopram continente adentro postergando as chuvas no sertão, são os mesmos ventos que fazem da região tão próspera na geração da energia eólica. O potencial brasileiro para energia fotovoltaica é também extraordinário, e ainda menos explorado em comparação ao eólico.


Longe de associar a ideia da crise à oportunidade, mas passou da hora da população do Centro-Sul do país assumir a variabilidade climática como parte do nosso clima, e não somente do “Nordeste”, superarmos o discurso sensacionalista, e apontarmos verdadeiros responsáveis pela crise que se instalou. As cidades impermeabilizadas estão cada vez mais esparramadas sobre o território brasileiro, gerando fortuna para poucos em troca da piora na qualidade do ar, das águas e do solo. O desmatamento para a expansão de pastos e lavouras para produção de commodities tem reduzido drasticamente a recarga dos aquíferos. Assim sendo, me recuso a encerrar uma conversa na fila do supermercado dizendo “o clima está muito diferente do que era, fim dos tempos” toda vez que alguma oscilação como a La Niña se instala.


Material Sugestivo para Consulta Bibliográfica e Citações

CAVALCANTI, Iracema et. al. (org.) Tempo e clima no Brasil. São Paulo: Oficina de Textos, 2009. 463 p.

Zavattini, João Afonso. Dinâmica Atmosférica e Análise Rítmica. Livro: A construção da climatologia geográfica no Brasil. Monteiro et. al. (org.) Campinas: Alínea, 2015.

Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico. Conjuntura dos recursos hídricos no Brasil 2020. Brasília: ANA, 2020. 118 p. Disponível em: http://conjuntura.ana.gov.br/



Gabriel Teles Noronha é técnico em meio ambiente pelo Centro Federal de Educação Tecnológica e geógrafo formado pela Universidade Federal de Minas Gerais com graduação sanduíche pela Trinity College Dublin, Irlanda. Sua pesquisa de iniciação científica envolvendo coleta de dados pluviométricos no município de Belo Horizonte rendeu menção honrosa durante a graduação e o perene interesse por climatologia o conduziu até este presente artigo. Foi educador ambiental no CEA-PROPAM entre os anos de 2013 e 2018, onde atendeu diariamente público escolar de toda região metropolitana, elaborou o Projeto Catalogador de Nascentes da Bacia da Pampulha, que por sua vez culminou com a monografia intitulada Bacia Hidrográfica da Pampulha e a Urbanização: das nascentes à represa. Atualmente participa de projetos de educação e consultoria ambiental no Quadrilátero aqui-Ferrífero/MG.


Pode ser contactado pelo @gabrieltnoronha (gmail/instagram)


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