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  • Foto do escritorTalita Gantus

Como as geociências podem atuar na gestão da covid-19

Atualizado: 30 de abr. de 2020

Como cumprir as principais medidas de combate à covid-19, propostas pela Organização Mundial de Saúde - como isolamento e higienização -, dadas as condições materiais em que vive a maioria da população brasileira? O poder público precisa agir, e aqui retornamos à pergunta posta no texto publicado na semana passada (Cenários de uma pandemia no espaço urbano): como as geociências podem contribuir para mitigar os efeitos da covid-19 nas cidades?


Apesar de muitos geocientistas já trabalharem com as questões de habitação e de insegurança hídrica em suas respectivas pesquisas, aqui trago luz ao alcance que a espacialização de dados e parâmetros podem nos trazer. Por meio de uma ferramenta amplamente difundida em nosso meio, como o QGis, é possível usar bases de dados georreferenciados para situarmos alguns dos problemas a serem superados no espaço urbano. Para isso, não é necessário “reinventar a roda”. É possível fazer uso de bancos de dados já existentes, como, por exemplo, o mapeamento de remoções (elaborado pelo LabCidade) e o de escassez hídrica (elaborado pela Coalizão pelo Clima) da Região Metropolitana de São Paulo - epicentro da covid-19.


Para além disso, existem demandas sociais que interseccionam os problemas econômicos enfrentados pela classe de trabalhadores: as questões de gênero. O texto publicado pela Bárbara aponta que a falta de acesso à água potável atinge em maior escala as mulheres, pois elas tendem a ser as responsáveis pela coleta e gestão da água doméstica. Somado a isso, 5,5 milhões de crianças no Brasil são registradas sem pai, o que torna esses lares chefiados por mulheres. Como se o cenário já não fosse catastrófico o suficiente, o índice de violência doméstica no Brasil (e no mundo) aumentou exponencialmente durante o período de isolamento. Iniciativas de mapeamento georreferenciado de denúncias de abusos contra mulheres já existem e precisam ser fomentadas.


O Grupo de Estudos Espaço Urbano e Saúde, da USP, vem monitorando a ocorrência da covid-19. A plataforma por eles desenvolvida, a MONITORA-CLUSTERS, atualiza periodicamente os testes estatísticos de varredura espaço-temporal no Brasil, com a finalidade de identificar municípios com excesso de casos em relação ao tamanho de suas populações.


A espacialização de dados georreferenciados ainda não é muito usada pelos gestores públicos na tomada de decisão; como, por exemplo, nas definições de obras públicas, na realocação de verbas de acordo com demandas sócio-espaciais e no planejamento estratégico de ações (como as medidas de combate à covid-19). Apesar de não serem amplamente utilizadas pelo poder público, as tecnologias de mapeamento têm relação histórica com as estratégias de enfrentamento de epidemias.


Foto: 'Exploring the Earth slowly' (Simon Schmidt). Distribuída por Imaggeo.


A utilização de mapas faz parte do cotidiano dos profissionais que lidam com o espaço urbano: geógrafos, geólogos, arquitetos, engenheiros. Entretanto, pouco se reflete sobre a função e o significado da cartografia nessas práticas profissionais, que, muitas vezes, assume um caráter naturalizado e neutralizado.


As representações sociais do espaço vêm adquirindo cada vez mais importância e realidade analíticas. Nesse sentido, a abordagem da cartografia deve se dar tanto na forma objetiva, da produção e pesquisa de mapas, quanto na forma simbólica, como ferramenta de compreensão do espaço e das relações sociais. Um bom exemplo disso é a reflexão que nos suscita a espacialização dos seguintes dados: foram testados (até dia 20/04/2020) 297 casos confirmados e 7 mortes por covid-19 no Morumbi, bairro classe alta de São Paulo; ao passo que na Brasilândia, bairro de classe baixa, foram contabilizados 89 casos e 54 mortes.


Todavia, alguns entraves são impostos para a construção de uma cartografia eficaz e que possa auxiliar no direcionamento efetivo de políticas públicas, como: a descentralização e falta de transparência dos bancos de dados públicos - o que os torna uma caixa preta - e um levantamento continuado e que cubra, de fato, os interstícios que evidenciam a precariedade de populações urbanas.


Paradoxalmente, vivemos em 2019 um corte de verbas destinadas à realização do Censo 2020, que, devido aos longos intervalos de ocorrência (10 anos), já não capta as mudanças sociais drásticas que acontecem nos períodos de crises políticas e econômicas. Na ausência de dados que abarquem a complexa e heterogênea realidade brasileira, é importante que o Estado seja atualizado e reestruturado a partir de bases democráticas e transparentes, fortalecendo as organizações sociais que já têm propostas concretas ao atuarem localmente.


O Estado de que precisamos deveria se organizar para dialogar com quem mora em áreas urbanas críticas, que têm baixíssima renda e dificuldades de sustentar suas casas. Ele precisa promover uma melhor distribuição das infraestruturas, mas também do poder político, social e territorial de quem hoje reside à margem. Todo esse processo de diálogo deve se dar de forma dialética, não pela imposição vertical de medidas de um Estado que sempre esteve ausente, mas pela apreensão da realidade, dos atores e das necessidades locais. É esse o momento preciso para pensarmos sobre qual é o modelo de sociedade que vislumbramos.


Talita está no instagram como @gantustalita e pode ser contactada pelo email tgantus@gmail.com


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