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Contra pandemias, ecologia
Atualizado: 7 de abr. de 2021
Será um pangolim? Um morcego? Ou mesmo uma cobra, como ouvimos dizer antes de ser negado? Resta saber quem será o primeiro a conseguir incriminar um animal selvagem que tenha dado origem a este coronavírus, oficialmente denominado COVID-19, que deixou centenas de milhões pessoas colocadas em quarentena ou isoladas atrás de cordões sanitários na China e outros países. Embora seja essencial elucidar este mistério, tal tipo de especulação nos impede de ver que nossa crescente vulnerabilidade a pandemias tem uma causa mais profunda: destruição acelerada dos habitats.

Arredores de Veneza, Itália (Foto: Bárbara Zambelli)
Desde 1940, centenas de microorganismos patógenos apareceram ou reapareceram em regiões onde, em alguns casos, nunca haviam sido notados antes. É o caso dos vírus do HIV e do Ebola na África Ocidental ou do Zika no continente americano. A maioria deles (60%) é de origem animal. Alguns provêm de animais domesticados ou do gado, mas sua maioria (mais de dois terços) vêm de animais selvagens. Porém, estes últimos não possuem culpa. Apesar de artigos fazerem uso de fotografias apontando para a vida selvagem como o ponto de partida para epidemias devastadoras [1], é falso que esses animais sejam especialmente infestados por patógenos letais preparados para nos contaminar. Na verdade, muitos microorganismos convivem com eles sem lhes causar mal nenhum.
O problema está em outro lugar: no desmatamento, urbanização e industrialização galopantes com os quais damos a esses microorganismos os meios para chegar ao corpo humano e se adaptar.
A destruição de habitats representa uma ameaça de extinção para muitas espécies [2], incluindo plantas medicinais e animais nos quais nossa farmacopéia tradicionalmente se baseia. Aqueles que sobrevivem não têm escolha a não ser ir para os redutos de habitat que a implantação humana lhes deixa livres. Como resultado, a probabilidade de contato próximo e repetido com humanos aumenta, permitindo que os microorganismos hospedeiros entrem em nossos corpos, onde deixam de ser benignos para se tornarem patógenos letais.
O Ebola é um bom exemplo disso. Um estudo realizado no ano de 2017 revelou que o aparecimento desse vírus, cuja origem está presente em várias espécies de morcegos, é mais comum em áreas da África Central e Ocidental que sofreram desmatamento recentemente. Quando derrubamos as florestas, forçamos os morcegos a se empoleirar nas árvores, em nossos jardins e em nossas fazendas. É fácil imaginar o que acontece a seguir: um humano ingere a saliva de um morcego ao morder uma fruta coberta de microorganismos; ou ainda, tentar caçar e matar esse visitante indesejado expondo-se aos microorganismos que encontram refúgio em seus tecidos. É assim que muitos vírus carregados por morcegos, inofensivos para eles, conseguem penetrar na população humana. Podemos citar o Ebola como exemplo, mas é também o caso do vírus de Nipah (presente principalmente na Malásia e Bangladesh), ou o vírus de Marburgo (especialmente na África Oriental). Este fenômeno é denominado "salto de vírus entre espécies", embora raro, pode fazer com que vírus de animais se adaptem ao nosso corpo e evoluam para se tornarem patógenos.
O mesmo é verdade para doenças transmitidas por mosquitos, uma vez que está estabelecido que existe uma relação entre o advento das epidemias e o desmatamento [3] – ainda que neste caso não se deva tanto à perda do habitat, mas à sua transformação.

Foto da região do sudeste do Pará, estado da Amazônia Legal com o maior índice de de desmatamento nos últimos 12 meses (Foto: Bárbara Zambelli)
Junto com as árvores, a camada de folhas mortas e raízes também desaparecem. A água e os sedimentos fluem com mais facilidade sobre esses solos desnudados e agora banhados pelo sol, formando poças que sustentam a reprodução de mosquitos transmissores, por exemplo, da malária.
De acordo com um estudo realizado em doze países, as espécies de mosquitos vetores de patógenos humanos são duas vezes mais numerosas em áreas desmatadas do que em florestas que permaneceram intactas.
Da mesma forma, a destruição de habitats também contribui para a modificação do número de indivíduos de várias espécies, o que aumenta o risco de disseminação de um patógeno. Um exemplo é o vírus do Nilo Ocidental, transmitido por aves migratórias. Na América do Norte, as populações de pássaros caíram mais de 25% nos últimos cinquenta anos sob os efeitos da perda de habitat e outras destruições [4].
Mas nem todas as espécies são afetadas da mesma forma. Os chamados pássaros especialistas (de um único habitat), como pica-paus e rálidos, foram muito mais afetados do que generalistas, como os pintarroxos e corvos. Enquanto os do primeiro grupo são vetores ruins do vírus do Nilo Ocidental, os do segundo são excelentes. Daí a forte presença do vírus entre as aves domésticas da região e o aumento da probabilidade de se testemunhar um mosquito picando um ser humano após ter picado uma ave infectada [5].
No caso de doenças transmitidas por carrapatos, trata-se do mesmo fenômeno. Ao mordiscar lentamente as florestas do nordeste americano, o desenvolvimento urbano afasta animais como gambás, que ajudam a manter a população de carrapatos afastada, enquanto permite que outras espécies menos eficazes nesse aspecto floresçam, como os ratos ou os veados. Resultado: as doenças transmitidas por carrapatos se espalham com maior facilidade. Entre elas, a doença de Lyme, que apareceu pela primeira vez nos Estados Unidos em 1975. Nos últimos vinte anos, foram identificados sete novos patógenos transportados por carrapatos [6].
O risco de surgimento de doenças não é apenas acentuado pela perda de habitats, mas também pela maneira como os substituímos. Para satisfazer seu apetite carnívoro, o homem arrasou uma área equivalente à do continente africano [7] para alimentar e criar gado. Parte desse gado é destinado ao comércio ilegal, onde é vendido em mercados de animais vivos (mercados úmidos). Nessa atividade, as espécies que em seu ambiente natural nunca teriam se cruzado são enjauladas próximas umas das outras e seus microorganismos podem circular alegremente. Esse tipo de negócio, que já deu origem em 2002-2003 ao coronavírus, responsável pela epidemia de síndrome respiratória aguda grave (SARS, por sua sigla em inglês), pode estar na origem do desconhecido coronavírus que hoje nos assola.
Mas existem muitos outros animais que crescem em nosso sistema de criação industrial. Centenas de milhares de animais empilhados uns em cima dos outros, enquanto esperam para serem levados ao matadouro - essas são as condições ideais para que os microorganismos se tornem patógenos mortais. Por exemplo, os vírus da gripe aviária, transportados por aves aquáticas, devastam fazendas cheias de galinhas em cativeiro, onde sofrem mutações e se tornam mais virulentos - um processo tão previsível que pode ser reproduzido em laboratório. Uma de suas cepas, o H5N1, é transmissível a humanos e mata mais da metade dos indivíduos infectados. Em 2014, dezenas de milhões de pássaros na América do Norte tiveram que ser sacrificados para impedir a propagação de uma cepa para outra [8].
As montanhas de fezes de gado oferecem outras oportunidades para microorganismos de origem animal infectarem a população. Como há infinitamente mais resíduos do que as terras agrícolas podem absorver como composto, eles geralmente acabam sendo armazenados em fossas com vazamentos - um refúgio para a bactéria Escherichia coli. Embora mais da metade dos animais mantidos em confinamento nos Estados Unidos sejam portadores da bactéria, ela ainda é inofensiva neles [9]. No entanto, em humanos, a E. coli causa colite hemorrágica, febre e pode levar à insuficiência renal aguda. E porque é bastante comum que dejetos animais entrem em contato com nossa água potável e alimentos, 90.000 americanos são infectados a cada ano.
Embora a mutação de microorganismos de origem animal em patógenos humanos tenha se acelerado, esse fenômeno não é nada novo. Ele remonta à revolução neolítica, quando os humanos começaram a destruir habitats naturais para expandir as terras agrícolas e domesticar os animais para uso, como bestas de carga. Em troca, estes animais nos deram alguns presentes envenenados ocasionais: devemos sarampo e tuberculose às vacas, a tosse convulsiva aos porcos e a gripe aos patos.
O processo continuou durante a expansão colonial europeia. No Congo, trilhos de trem e cidades construídas por colonos belgas permitiram que um lentivírus transportado pelos macacos da região aperfeiçoasse sua adaptação ao corpo humano. Em Bengala, os britânicos ocuparam o imenso pantanal de Sundarbans para usar como arrozal, expondo os habitantes a bactérias aquáticas encontradas nas suas águas salobras.
O lentivírus do macaco tornou-se HIV. A bactéria aquática Sundarbans, hoje conhecida como cólera, já causou sete pandemias, a mais recente no Haiti. As pandemias causadas por essas intrusões coloniais ainda são atuais.
Felizmente, como não temos sido meras vítimas passivas desse processo, podemos também fazer muito para reduzir o risco de surgimento desses microorganismos. Podemos proteger os habitats naturais para garantir que os animais conservem seus microorganismos em vez de transmití-los a nós, objetivo esse do movimento One Health [10]. Podemos monitorar de perto os ambientes em que os microorganismos animais são mais suscetíveis a se tornarem patógenos humanos, tentando eliminar àqueles que apresentam uma tendência de se adaptar ao nosso corpo antes de desencadearem epidemias. É exatamente nisso que se concentram há dez anos os esforços dos pesquisadores do programa Predict, financiado pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). Eles já identificaram mais de novecentos novos vírus relacionados à expansão do homem no planeta, e entre eles há cepas até então desconhecidas de coronavírus semelhantes ao da SARS [11].
Hoje, uma nova pandemia se aproxima, e não é exclusivamente devido ao COVID-19. Nos Estados Unidos, enquanto a administração Trump tem se empenhado em desregulamentar as indústrias extrativas e todas as atividades industriais, ela favorece o salto de microorganismos dos animais para os humanos. O governo dos Estados Unidos, por sua vez, compromete a possibilidade de localizar o próximo microorganismo antes que se espalhe, já que em outubro de 2019, decidiu encerrar o programa Predict. Além disso, no início de fevereiro de 2020, anunciou que pretendia reduzir sua contribuição para o orçamento da OMS em 53%. Como declarou o epidemiologista Larry Brilliant: "o surgimento de vírus é inevitável, mas não de epidemias".
Em qualquer caso, não seremos capazes de evitá-las se não tomarmos a mesma determinação quando se trata de mudar as políticas que fizemos para alterar a natureza e a vida animal.
NOTAS
[1] Kai Kupferschmidt, “This bat species may be the source of the Ebola epidemic that killed more than 11,000 people in West Africa”, Science Magazine, 24/01/2019.
[2] Jonathan Watts, “Habitat loss threatens all our futures, world leaders warned”, The Guardian, 17/11/2018.
[3] Katarina Zimmer, “Deforestation tied to changes in disease dynamics”, The Scientist, 29/01/2019.
[4] Carl Zimmer, “Birds are vanishing from North America”, The New York Times, 19/09/2019.
[5] BirdLife International, “Diversity of birds buffer against West Nile virus”, ScienceDaily, 6/03/2009.
[6] “Lyme and other tickborne diseases increasing”, Centers for Disease Control and Prevention, 22/04/2019.
[7] George Monbiot, “There’s a population crisis all right. But probably not the one you think”, The Guardian, 19/11/2015.
[8] Cristina Venegas-Vargas et al., “Factors associated with Shiga toxin-producing Escherichia coli shedding by dairy and beef cattle”, Applied and Environmental Microbiology, vol. 82, n° 16, Washington, DC, Agosto de 2016.
[9] ibdem
[10] Predict Consortium, “One Health in action”, EcoHealth Alliance, Nueva York, octubre de 2016.
[11] “What we’ve found”, One Health Institute.
[Nota da editora: Esse artigo expressa a opinião pessoal da autora. Essas opiniões não necessariamente refletem um posicionamento oficial d’a_Ponte]
Texto de Sonia Shah, originalmente publicado em espanhol como um capítulo do livro “Pandemia: capitalismo y crisis ecosocial”, em junho de 2020 (Licença CC BY-NC-SA 3.0)
Tradução Caio Tavares

Caio é Técnico em Geologia, Geólogo e Espeleólogo. Apaixonado pelas ciências e desde sempre interessado pelas questões socioambientais, vem desenvolvendo desde os tempos de técnico estudos voltados para a caracterização, uso e ocupação do meio físico. Atualmente trabalha na empresa MAP Ambiental realizando estudos geotécnicos para o ramo das energias renováveis no Nordeste do Brasil. Caio também é autor do livro Microtexturas em Rochas Ígneas.