Talita Gantus
Da lama ao caos: anseios para um verão ensolarado e um governo de bons ventos
por Talita Gantus
Primeira segunda-feira de trabalho de 2023, volto renovada das festas e viagens de fim de ano, descansada depois de um longo e cansativo ano de trabalho, comemorando [finalmente] minha qualificação no doutorado, e, como não passaria batido, esperançosa com o novo governo, dada a magnitude, emoção e beleza do que significou a posse do Presidente Lula. Assisti ao seu discurso e a toda a cerimônia como grande parte do povo brasileiro: com os olhos marejados e respirando ares de um novo (re)começo. Animada era a minha palavra.
Também acompanhei alguns discursos de ministros e ministras de Estado, e pude me sentir bem representada e orgulhosa das mentes pensantes que produzimos enquanto país (ainda que sob tais circunstâncias de desigualdade), como há muito não me lembrava que era possível se sentir no que diz respeito à representação popular no poder público. Nesse ínterim de um novo tempo que viria soprando como o frescor de uma chuva de verão, ao final de um belo dia ensolarado, em um domingo em que eu me planejava para, no dia seguinte, retomar a escrita desta coluna – há muito escanteada para que eu pudesse dar conta de um doutorado –, animada com esse novo ano que vinha trazendo boas perspectivas, aquela que seria uma esperada e passageira chuva veranil atravessa nossa véspera de uma bendita segunda-feira se apresentando como um tufão. Daqueles de granizo, que traz consigo destruição.
Claro, em tempos de mudanças climáticas, temos sido pegos com certa [surpreendente] surpresa por chuvas inesperadas que se prolongam por semanas, acompanhadas de temperaturas amenas, em períodos em que se esperaria muito calor e baixa umidade. Minimizamos a potencialidade dos danos (materiais e simbólicos) de certos processos (sociais e naturais). Fechamos os olhos para os indícios: a chuva fina e constante que se instala e se aglutina ao cotidiano, quase que passando a fazer parte daquela paisagem cinzenta e, por vezes (a depender de nosso estado de espírito bastante volátil), melancólica, que nos oculta a vista do horizonte – puro fetiche, enfeitiçamento da neblina que nos cega da luz do sol de um futuro que brilha. Não nos preparamos para os desastres – ainda que a crise iminente esteja escancarada – e acabamos, no susto, agindo de modo reativo à ameaça.
Estou falando aqui – a partir dessa metáfora da minha área de pesquisa nas geociências – dos atos terroristas praticados em Brasília, no domingo de 08 de janeiro, com a invasão, vandalismo, furto e destruição do patrimônio público no Palácio do Planalto. Estou falando da ameaça e ofensiva fascista subestimada por tantos por tanto tempo. Um país racista, machista, homofóbico, moralista, capacitista como o Brasil é terreno fértil para o fascismo. Fascismo esse que representa o patriarcado, branco, com sede de poder e de dinheiro, vociferante de delírios violentos e que cultua a virilidade – que demanda e se ajoelha a símbolos de um mito falicizado que é falido. Claro, não é só o homem branco que tem propensão ao fascismo, ou que sejam esses os fascistas, mas esse é um dos símbolos fundamentais que representa a ideologia de grupos supremacistas.

Trecho do filme Bastardos Inglórios, de Quentin Tanrantino.
Pois bem, eu planejava escrever sobre o futuro que eu espero e desejo para esse novo governo, com investimentos na ciência, na educação, na saúde, em que a agenda ambiental e a demarcação de terras seja tratada com a devida seriedade – embora com todas as contradições que um governo centro-esquerda como o de Lula carrega. Pensava em trazer ideias, propostas e análises de conjuntura que permeiam as questões socioambientais do nosso país e da América Latina, no intuito de oxigenar nossas mentes para esse novo capítulo da nossa história. Esse novo ano. Essa estreia de uma nova agenda, um novo calendário, novos planejamentos e planos. Abrir diálogo para que, juntos, juntas e juntes, ainda que nem sempre concordantes, pudéssemos contribuir com o novo governo na reconstrução do nosso país tão jogado às traças. Planejava escrever um outro texto, falando de temas essencialmente ligados às geociências e à agenda ambiental de políticas públicas para os próximos anos, quando fomos atravessados, no Brasil, por essa tempestade destrutiva que aconteceu em Brasília.

Terror bolsonarista promove ações criminosas no país.
Foto: Marcelo Camargo | Agência Brasil.
Mas, tal como o novo governo que precisou interromper seu trabalho de reconstrução do Brasil e da dignidade de seu povo e deslocar sua atenção para reprimir o avanço fascista, também desloquei minha escrita para registrar, neste veículo de divulgação científica, esse momento da história que, sob consternação e indignação, pudemos assistir em tempo real nos telejornais. Atos terroristas que ocorreram sob complacência e conivência das forças repressivas militares do Estado, e de certos representantes do poder público, que nunca pouparam violência e ódio contra pessoas negras que apenas caminhavam pelas ruas carregando seus guarda-chuvas ou sacolas de compra com desinfetante Pinho Sol.
Contudo, uma coisa é bem didática nesse cenário que se passou em Brasília: a forma desrespeitosa, escatológica e odiosa com a qual os terroristas incentivadores de Bolsonaro trataram as obras de arte e os símbolos culturais que pertencem ao povo dão o tom da crise não somente política, mas ética, cultural e estética que atravessa o Brasil. Em tempo, atentemos aqui: o que foi destruído pertence ao povo, tudo o que foi destruído é nosso! – como Dilma perfeitamente ensinou ao seu neto, uma criança que aprendeu a tratar muito melhor o nosso patrimônio coletivo do que marmanjos de meia-idade.
O que foi vandalizado não é de nenhum representante do povo que senta na cadeira da presidência de 4 em 4 anos, nem de nenhum ministro da justiça que ocupa o cargo desde sua indicação até o fim de sua breve vida. Todos os bens materiais lá destruídos transcendem o nosso tempo do agora, ultrapassam gerações com sua força de representação de uma riqueza imaterial que pertence ao povo brasileiro (ainda que seja um povo com suas feridas coloniais abertas).
O fascismo sempre esteve à espreita, no seio do neoliberalismo, e minimizamos seu poder devastador. Precisamos combater estruturalmente o racismo, o patriarcado e o capitalismo. Só assim iremos esmagar de vez o fascismo.
A coluna sobre a esperança, as demandas e os questionamentos (também, por que não?) ao novo governo, ficam para depois.
Por aqui, pretendo em breve conseguir retornar com textos que tratam das pastas da ciência, tecnologia, educação, direitos humanos, igualdade racial, povos indígenas, energia, meio ambiente, dentre outras; temas transversais e dialógicos que são abordados neste blog desde sempre.
Por fim, como nos ensinou o filósofo Franco Berardi, em uma entrevista, “contra o pânico só existe uma vacina e essa vacina é pensar junto”. Uma coisa é certa: precisamos sair da resignação para a ressignificação. Vamos ressignificar nossa história de um Brasil racista e de tendências fascistas, encarando e enfrentando com seriedade esse nosso passado e presente, e construir uma vida coletiva digna de ser vivida e compartilhada. Os atos de rua pró-democracia (ainda que seja uma democracia burguesa, racista e patriarcal) do dia 09 de janeiro, pacíficos, confrontando o terrorismo em Brasília, só demonstram a potencialidade da nossa força e o lugar em que precisamos estar nos próximos 4 anos do novo governo; pensando juntos, demarcando nossas posições, demandas e necessidades, cobrando por aquilo que se faz importante para o povo. Nossos anseios são legítimos e a nossa luta é por justiça.

Talita pode ser contatada pelo email tgantus@gmail.com, está nas redes sociais como @gantustalita e publica textos pessoais em www.talitagantus.info
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