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Desenvolvimento sustentável e mineração
A década de 1980 apresentou uma inflexão no que diz respeito à questão ambiental no mundo. Após duas décadas de um processo chamado por especialistas de “o renascimento do ambientalismo”, a polarização até então observada entre cientistas naturais e economistas de diversas áreas começou a se reduzir, apontando para a consolidação do conceito de desenvolvimento sustentável. Enquanto o mundo discutia o “Nosso Futuro Comum” [1], o Brasil, sob o impacto das ideias e da morte do ambientalista Chico Mendes, debatia noções e possibilidades de “uso sustentável da natureza”, no contexto da Assembleia Constituinte que, em 1988, apresentou o texto da chamada Constituição Cidadã. Na Rio/Eco92 [2], o modelo de desenvolvimento assentado no tripé economia-ecologia-equidade social parecia ter se tornado o principal objetivo a ser alcançado pelas nações a fim de mitigar os efeitos do aquecimento global e garantir um desenvolvimento que “atenda às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades” [3].
Entretanto, a prática das políticas ambientais em nível local e nacional muitas vezes têm se distanciado das metas estabelecidas nos acordos internacionais, como bem evidencia o caso do regime climático.

Rio Gualaxo do Norte, a jusante do local onde ocorreu o rompimento da barragem de Fundão em 2015, em Mariana, MG, sob responsabilidade da Vale/Samarco/BHP. A correia transportadora de minério, na foto, foi uma das primeiras obras de reconstrução a ficarem prontas após o desastre.
(Foto: Julia Pontes, 2019)
Depois de duas dezenas de rodadas de negociações internacionais, envolvendo quase que a totalidade dos países (as Partes) ao longo de mais de duas décadas, observa-se que não apenas as metas do Protocolo de Kyoto (1997- 2012) não foram alcançadas, mas que as emissões globais de gases de efeito estufa sofreram um verdadeiro overshooting. Luiz Marques aponta que o Protocolo “engajava seus signatários a diminuir até 2012 suas emissões de gases de efeito estufa em 5,2% em relação aos níveis de 1990. [...] Ao invés de caírem 5,2%, as emissões atmosféricas de CO2 aumentaram entre 1992 e 2012 mais de 50%, com um acréscimo recorde de mais de 5% apenas em 2010, causando um crescimento de 11% nas concentrações atmosféricas desse gás” [4].
Muito embora este cenário venha se revelando preocupante, destaca-se que, “curiosamente, o tema do orçamento global de carbono tem ficado parcialmente obscurecido tanto no debate acadêmico sobre as negociações climáticas quanto na abordagem das transformações climáticas pela grande mídia” [5], e apontam como Estados e grandes corporações poluidoras atuam de maneira assimétrica tanto no uso quanto na responsabilização do uso desse recurso comum – no caso, a atmosfera – reforçando o alerta de Dardot & Laval [6] de que os relatórios do PNUD e do IPCC nos últimos anos “apresentam o aquecimento global como o problema mais importante e urgente que a humanidade já enfrentou.” [7]
Tal descaso aos riscos impostos pelo crescente aumento das emissões de gases de efeito estufa se estende a outras formas de poluição, uso e esgotamento dos recursos naturais e encontra ressonância entre governos e corporações. É nesse cenário de forte atuação das grandes corporações que modelos de governança e gestão ambiental privadas vêm, por meio de seus representantes em distintas esferas de poder no Estado brasileiro, conseguindo influenciar ou fragilizar as leis ambientais e as normas regulatórias que protegem o patrimônio ambiental comum. Essa influência se dá em favor da apropriação privada, com finalidade de acumulação igualmente privada, dos recursos do solo e do subsolo, em detrimento do uso de recursos pela sociedade, em particular pelas comunidades locais, com ameaças à integridade e resiliência dos ecossistemas.
As mineradoras, em especial, têm figurado como atores dos mais agressivos contra iniciativas e atores sociais que ousam colocar barreiras a seu avanço em áreas com potencial para a exploração mineral. [8] Nesse contexto, o Estado brasileiro não tem cumprido sua obrigação constitucional de proteger recursos naturais, biodiversidade, água – recursos chamados “comuns”. [9] Pelo contrário, progressivamente, tem agido de acordo com os interesses de corporações nacionais e internacionais que, operando segundo lógicas alheias à sustentabilidade socioambiental e à resiliência das comunidades e ecossistemas atingidos por suas atividades, contribuem para a manutenção ou reconfiguração da condição neocolonial de nosso país como exportador de matéria prima. [10]
É nesse sentido que essas empresas têm empenhado significativos esforços e investimentos em instrumentos de gestão e governança ambiental, de modo a desvincular suas imagens institucionais perante a opinião pública dos graves impactos causados por suas atividades. Dentre as ações que visam aliar os objetivos corporativos à construção de uma visão pública de promotoras do desenvolvimento sustentável, estão: a Responsabilidade Social Corporativa (RSC), a Governança Ambiental Privada (GAP) e a ‘Licença Social para Operar’ (LSO). A RSC se empenha em estabelecer muito mais um conjunto de ações ligadas ao marketing corporativo do que um conjunto de boas práticas com preocupação concreta com a sustentabilidade, com os danos ambientais ou com a sua compensação. “O que se percebe nestas pesquisas é que as organizações têm uma preocupação excessiva em divulgar projetos de cunho social e ambiental, em detrimento das ações de fato, ou seja, o processo acontece especialmente no campo do discurso e menos em ações práticas”. [11] Já a LSO se constitui de uma política de governança privada que visa assegurar a confiança da população local e “obter um ambiente favorável para operar, aliado à aceitação e à confiança das comunidades anfitriãs”. [12]
Completam essa adequação do ambientalismo as práticas capitalistas, as articulações, em vários níveis, dos poderes públicos e privados, entre governos e atores não governamentais, que afetam decisões sobre a proteção de recursos naturais e do meio ambiente. Zhouri [13] denomina esse processo de “adequação ambiental e social”, ou seja, uma forma que o grande capital e as grandes corporações têm encontrado para subverter a imagem ditada pelo discurso de sustentabilidade vinculado à necessidade de uma profunda alteração no modo de produção da vida no sistema capitalista.
Notas do autor:
[1] Our Common Future – The world commission on environment and development
[2] II Cúpula da Terra, realizada no Rio de Janeiro em 1992.
[3] ONU – Comissão das nações unidas para o meio ambiente. Nosso Futuro Comum. Editora da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, RJ. 1991.
[4] MARQUES, Luiz. Capitalismo e o colapso ambiental. Editora Unicamp, 2018, p. 51.
[5] CORAZZA & GOMES, 2019, p. 3.
[6] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. Boitempo Editorial, 2017.
[7] DARDOT & LAVAL 2017, p. 13 apud PNUD 2007/2008.
[8] PoEMAS. Antes fosse mais leve a carga: avaliação dos aspectos econômicos, políticos e sociais do desastre da Samarco/Vale/BHP em Mariana (MG). Mimeo. Volume 1, 2015; volume 2, 2017.
[9] OSTROM, Elinor et al. Revisiting the commons: local lessons, global challenges. science, v. 284, n. 5412, p. 278-282, 1999
[10] PoEMAS. Antes fosse mais leve a carga: avaliação dos aspectos econômicos, políticos e sociais do desastre da Samarco/Vale/BHP em Mariana (MG). Mimeo. Volume 1, 2015; volume 2, 2017.
[11] Andrande, Marcelo Aureliano Monteiro de. Responsabilidade social corporativa: o que empresas siderúrgicas de MG declaram e quais as percepções desuas comunidades de entorno. Dissertação. UFMG, 2009.
[12] SANTIAGO, A., L., F., Licença social para operar e avaliação de impacto social: confiança e engajamento das comunidades anfitriãs, Belo Horizonte, Letramento, 2019.
[13] Zhouri, Andrea, Laschefski, K. DB Pereira, A insustentável leveza da política ambiental: desenvolvimento e conflitos socioambientais. Autêntica Editora, 2005.
[Nota da editora: Esse artigo expressa a opinião pessoal do autor. Essas opiniões não necessariamente refletem um posicionamento oficial d’a_Ponte]

Daniel Neri, doutorando em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp, vem estudando os conflitos conflitos socioambientais oriundos da atividade minerária no Quadrilátero Ferrífero em Minas Gerais. Mestre em História das Ciências pela Fafich/UFMG . Licenciado em Física com especialização em Ensino de Ciências pela Faculdade de Educação. Professor de Física no Instituto Federal de Educação Científica e Tecnológica de Minas Gerais (IFMG campus Ouro Preto), atuando como professor no curso de Licenciatura em Física e de Ensino Técnico Integrado. Integra a Frente Mineira de Luta das Atingidas e dos Atingidos pela Mineração (FLAMA/MG), o CRIAB/Unicamp e o Sinasefe/MG.