Talita Gantus
Ecologismo e feminismos na construção da agroecologia
Atualizado: 14 de abr. de 2021
O ecologismo é um movimento político ecológico que nasce da percepção de que a atual crise ecológica é uma consequência direta de um modelo de civilização insustentável do ponto de vista ecológico. Dessa forma, a crise ecológica não se deve a falhas setoriais e ocasionais no sistema dominante, como um ministro do meio ambiente que sente prazer em ver florestas no chão - como se o problema fosse a pessoa dO ministro. O ecologismo, portanto, coloca que apenas uma mudança global nas estruturas econômicas, sociais e culturais pode encaminhar uma solução pra atual crise sistêmica, civilizacional, cultural e ecológica. Uma crise que se repete periodicamente, estabelecendo ciclos.
Autores ecologistas brasileiros, como Antonio Lago e José Augusto Pádua, ousaram prever, na década de 1980, que o tensionamento das contradições, a possibilidade de uma escassez de recursos naturais, ou a experiência de crises socioecológicas (como um cenário de pandemia com sua raiz em causas ambientais), poderiam levar a um crescimento do controle autoritário sobre a população. Eles alertaram, também, para uma possível emergência do ecofascismo.
Não à toa, recentemente voltaram a emergir nas mídias os discursos de realização de testes de vacinas na população carcerária em vez de testagem em animais. Narrativa que se apresenta profundamente racista, visto que mais de 60% da população carcerária é preta ou parda, sendo que 40% dos/as presos/as ainda não foram julgados/as. O discurso é, além disso, fascista, já que se assemelha, cada qual nas suas proporções, ao que aconteceu nos campos de concentração nazistas. É também punitivista, visto que não critica o encarceramento em massa como uma política de subjugação e exploração de corpos e subjetividades [racializadas, em sua maioria]; uma forma de descarte do exército de trabalhadores reserva que oneram o Estado capitalista. E, não menos importante, despolitiza os debates e pautas levantadas pelo movimento ecossocialista pela libertação de todas as formas de vida não-humanas.
Essa e outras experiências - sejam nos campos, nas florestas ou nas cidades - reeditam o trauma do empreendimento colonial. A colonialidade persiste pois a uma considerável parcela da população é negada a experiência cidadã, a condição de sujeites, a possibilidade de existência. É negado o acesso a terra, teto e trabalho (não alienado e não explorado).
Nesse sentido se colocam os feminismos periféricos e camponeses que constroem a agroecologia brasileira, resistindo nos assentamentos populares do campo, nas comunidades quilombolas e indígenas, nas comunidades da floresta e nas estratégias de agricultura urbana.
As práticas agroecológicas representam uma forma de saber/viver que visa a conservação e a regeneração dos recursos produtivos através de ações sociais coletivas, fundamentadas no conhecimento sobre a agrobiodiversidade e no uso de tecnologias de baixo impacto que potencializam as funções ecológicas do sistema. Aqui eu falo um pouco mais sobre a agroecologia. A agroecologia urbana enquanto projeto estratégico está envolvida no reconhecimento e acesso a incentivos fiscais de fomento à agricultura familiar e na promoção de espaços de coesão social e mobilização política, inclusive de organização e luta contra a especulação imobiliária nas cidades.
Mas, como o feminismo se articula com esse movimento agroecológico amplo e comunitário? Em sua pesquisa de doutorado, Maria da Graça Costa entrevistou camponesas durante a Marcha das Margaridas no ano de 2015. A pesquisadora notou que, mesmo engajadas em uma articulação de mulheres, nem sempre elas se consideravam feministas. Ao passo em que todas dizem apoiar a luta por seus direitos, mobilizando categorias como “igualdade, justiça e autonomia”. É interessante, nesse sentido, pensar quais os significados e valores que as mulheres dos movimentos de luta pela terra e agroecológico associam ao feminismo. Sendo esse movimento lido, por muitas mulheres da base, como uma luta historicamente associada à classe média, branca, urbana e acadêmica. Associação que lembra a luta das feministas negras e sua relação conflituosa com o movimento feminista sufragista nos Estados Unidos, composto, majoritariamente, por mulheres brancas, burguesas e escravocratas. Angela Davis faz uma análise materialista histórica dessa (e de outras) contradição em seu livro Mulheres, raça e classe.

Marcha das Margaridas, 2019. (Foto: Letícia Figueiredo)

Reivindicações das mulheres do campo.
Marcha das Margaridas, 2019. (Foto: Letícia Figueiredo)
Apesar da recusa em se categorizar como feministas, Maria da Graça Costa aponta para a existência de um movimento de mulheres próprio que traz demandas e estratégias de lutas específicas. Para exemplificar, ela usa o conceito de feminismo periférico para entender como se dão essas construções feministas. Segundo ela, “feminismo periférico é uma expressão usada por Saney Souza - mulher quilombola e militante da Rede Carioca de Agricultura Urbana - para descrever a luta das mulheres da Zona Oeste do Rio de Janeiro”. O feminismo periférico parte do olhar “subalterno” que questiona as formas estabelecidas de vivenciar a política e a cidade, reivindicando um feminismo latino-americano que necessariamente considera as intersecções de classe e raça no que se refere às desigualdades sociais. Nesse sentido, relaciona-se com outros feminismos periféricos decoloniais que vêm crescendo na América do Sul, como o feminismo comunitário. O conceito feminismo comunitário, por sua vez, foi criado por Julieta Paredes, feminista decolononial boliviana/aimará pra pensar a luta organizada das mulheres de setores populares e indígenas da América Latina.
Esses movimentos, que têm nas mulheres as atoras que costuram as redes de afeto e coesão social, promovem formas de ressignificar a relação das pessoas com o território em que vivem e de repensar as relações sociais, de educação, de trabalho e de alimentação, para além da questão da produção. Fortalecem a luta de acesso à terra, aos meios de produção para reprodução da vida. A agroecologia é essencial para a segurança e soberania alimentar. Esse sistema, aliado à ideia de resgate das culturas alimentares tradicionais, de circuitos de troca mais curtos, de mão de obra autônoma, coletivizada, não explorada e não territorialmente alienada, como lembra Milton Santos, experimentam formas alternativas de relação alimentar.
Seja a forma que promove a alimentação saudável e, de fato, sustentável; seja aquela que promove outras relações de viver, como a comensalidade: o comer junto. O ritual da comensalidade, fator de sociabilidade e mecanismo para a consolidação de solidariedade grupal, envolve a partilha não só de alimentos, mas de significados. É o momento de reuniões. Tempo sequestrado na modernidade neoliberal, pois, eles trabalham enquanto você se senta para comer apreciando. Alguns, aliás, só trabalham, e comem de pé mesmo o cachorro quente do carrinho no ponto de ônibus.
Essas formas alternativas de relação com o alimento, que se apresentam enquanto tarefas (domésticas e de cuidado), são, em algumas sociedades, produtos de desigualdades de gênero. Em outras, em que o gênero, quando existe, não funciona como um dispositivo de opressão, essas formas de relação assumem um caráter contra-hegemônico. De todo modo, ambas - não sendo essencialistas - encarregam (e sobrecarregam) a mulher de uma parte fundamental e necessária do trabalho de produção e reprodução da vida.
O isolamento geográfico em que muitas dessas mulheres se encontram ocultam os casos de violência de gênero que sofrem em seus lares. A ausência do Estado em promover um acolhimento adequado para mulheres vítimas de violência e acesso equitativo a bens públicos - como creches, escolas no campo, acesso à saúde da família e a hospitais - também contribui para que recaia sobre elas os trabalhos de cuidado, reproduzindo, assim, a desigualdade de gênero. A falta de acesso à água em muitos desses territórios, principalmente nas regiões de conflitos hídricos com o agronegócio e as grandes mineradoras, também sobrecarrega as mulheres agricultoras, visto que elas acabam sendo as responsáveis pela gestão da água, diretamente relacionada aos trabalhos de casa - para além das necessidades de irrigação do plantio.
O debate feminista adquire lugar central na construção do movimento agroecológico a partir do momento em que as mulheres do campo, indígenas, negras e de populações tradicionais, começam a trazer suas pautas, demandas e necessidades de reconhecimento dentro do movimento, fazendo o levante de que “sem feminismo não há agroecologia”. Constroem, a partir disso, uma agenda para o movimento ambiental no Brasil e em toda a América Latina. Movimentos coletivos, como a Marcha das Margaridas, o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e o grupo de mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) têm exposto as reivindicações por alternativas estruturais e sistêmicas ao desenvolvimento agrocapitalista, trazendo pautas feministas para o diálogo e a colocando a luta pela reforma agrária e urbana como uma proposta de justiça real e simbólica.
Ao considerarmos a articulação entre feminismos e agroecologia, a partir de perspectivas populares, comunitárias, revolucionárias, decoloniais, quer seja, poderemos construir uma política do bem viver, do comum.
[Participei de uma conversa incrível com a Ana Carolina, geógrafa e mestranda em agroecologia, e a Elizete, agricultora e militante, cujo tema foi: sem feminismo não há agroecologia. Nesse link aqui, você acessa essa potente conversa que ficou gravada; uma realização da a_Ponte em parceria com a ABMGeo, no quadro gênero & (geo)ciências.]
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