Bárbara Zambelli
Fiat lux: a crise do fósforo
Atualizado: 7 de abr. de 2021
Começo o texto dessa semana trazendo um questionamento: qual o link entre produção de alimentos e mineração?

Processo produtivo de café, em Minas Gerais. (foto Bárbara Zambelli)
Essa pergunta pode parecer simples à primeira vista, mas não se engane! O buraco é bem mais embaixo. Apesar de vários insumos utilizados na agricultura terem origem mineral (como a utilização de calcário para correção do pH de solos, por exemplo), nesse texto volto toda a atenção para um elemento especial: o fósforo.
Dê uma olhada ao seu redor e tente identificar qualquer coisa que tenha fósforo como componente (além da caixinha de fósforos, vamos lá!).
O fósforo - representado pela letra P na tabela periódica - é um elemento essencial para a vida, bem como o oxigênio, o nitrogênio e o carbono. Ele está presente em todas as plantas, animais, fungos e bactérias, constituindo paredes celulares, DNA, RNA e ATP (que transporta energia para o cérebro). Nossos ossos e dentes têm fósforo em sua composição.
Nós, humanos, bem como todos os animais, obtemos nosso fósforo através da alimentação, enquanto as plantas o absorvem do solo pelas suas raízes. Se uma planta não recebe fósforo suficiente, seu crescimento é fortemente afetado, a formação de frutos e sementes diminui e as plantações produzem menos.

Banca de frutas em Bologna, Itália. (Foto Bárbara Zambelli)
O fósforo pode ocorrer naturalmente nos solos, como resultado do desgaste de rochas fosfáticas (como no domo alcalino que ocorre em Catalão, Goiás), ou pode ser adicionado pelo uso de fertilizantes químicos, esterco e resíduos orgânicos. Assim como qualquer outro bem mineral, esses depósitos demoraram milhões de anos para se formarem e estão distribuídos de maneira errática pelo globo.
Por que devemos nos preocupar com fósforo?
Ele é um recurso não renovável que não pode ser substituído ou sintetizado para adubação das plantas. Além disso, é um dos nutrientes mais reativos do solo, sendo facilmente transformado quimicamente em formas que são inacessíveis às plantas. Um estudo mostra que entre 80 e 90% de todo o fósforo extraído em todo o mundo é usado na produção de alimentos.
Mas, de acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura (FAO), apenas 15 a 30% do fósforo contido nos fertilizantes é de fato absorvido pelas plantações. Isso porque, geralmente, os fertilizantes são aplicados muito além das demandas das plantas.
Segundo o Serviço Geológico Americano (USGS), 88% de todas as reservas minerais de P estão sob controle de 5 países: Marrocos, China, Argélia, Síria e África do Sul. Marrocos é de longe o país mais abundante, detendo 74% das reservas mundiais de fosfato na região do Saara Ocidental. Portanto, a maioria dos países depende de importações de fósforo para sustentar a agricultura. Um futuro cenário de escassez se manifestaria não apenas no campo da escassez física, mas também em termos de conflitos geopolíticos, econômicos e gerenciais.
Num cenário de aumento da população global - que deve chegar a 9,7 bilhões até 2050, alimentar quase 2 bilhões de novas bocas é um desafio crescente. Uma demanda crescente por alimentos significa uma demanda crescente por fósforo.

Plantação em terraços, no Nepal. (Foto Bárbara Zambelli)
As reservas minerais de fósforo serão esgotadas mais cedo ou mais tarde. Alguns autores argumentam que o 'pico de fósforo' acontecerá muito em breve, em 2030, enquanto outros afirmam que não acontecerá antes de 2100. Não há consenso porque os estudos são baseados em diferentes metodologias e suposições sobre demanda e incertezas sobre a oferta.
Dessa maneira, quando pensamos sobre o ODS 2 (erradicar a fome, alcançar a segurança alimentar, melhorar a nutrição e promover a agricultura sustentável), devemos levar em consideração a maneira como o fósforo é extraído, distribuído e consumido na cadeia global de produção de alimentos.
Outra questão importante é a produção de biocombustíveis. Com uma pressão crescente para redução do consumo de combustíveis fósseis e consequente redução das emissões de gases de efeito estufa, de acordo com o Acordo de Paris, muitos países estão recorrendo aos biocombustíveis, como o álcool feito de milho ou cana-de-açúcar (para saber mais sobre, leia o texto da Joana sobre mudanças climáticas). Essas culturas também precisam de fósforo e são cultivadas em terras que poderiam ser usadas para fins agrícolas.
E o meio ambiente?
Embora o fósforo seja um recurso escasso e vital para a agricultura, ele também pode ser um poluente nos corpos d'água. Sabe aquele fósforo que foi utilizado como fertilizante mas não foi absorvido pelas plantas? Então, quando chove, ele acaba sendo transportado para córregos, rios e lagos. Essa entrada antropogênica de fósforo gera uma concentração anômala nos corpos d'água, incentivando o crescimento de algas e macrófitas aquáticas. Esse processo, chamado de eutrofização, limita a penetração de luz e aumenta a turbidez na coluna d’água, alterando os níveis de oxigênio dissolvido.
A eutrofização pode ser tóxica e alterar profundamente a ecologia do corpo de água. Além dos efeitos ambientais devastadores, ela produz vários efeitos indesejáveis em relação à sociedade, como problemas relacionados ao acesso à água potável e diminuição da produção de frutos do mar.

Eutrofização eno Rio Potomac (Washington DC, EUA), próximo a saida de água residual. (Foto Alexandr Trubetskoy CC-BY-SA-3.0)
Outro problema ambiental diz respeito aos rejeitos da mineração. As rochas fosfáticas, como resultado de sua composição química, podem conter quantidades notáveis de materiais radioativos que ocorrem naturalmente. O processo de conversão do minério de fósforo em ácido fosfórico (que pode ser usado como fertilizante), ou fósforo elementar, produz o fosfogesso como um subproduto primário. Esses processos concentram no rejeito a maior parte do tório e urânio que ocorrem naturalmente nas rochas, além de seus produtos de decaimento, como o rádio e o rádon. Se não for dada a devida atenção a esses resíduos, existe o risco de contaminação do ar com gás radônio (radioativo) e das águas subterrâneas, afetando os agricultores e a população em geral.
O que podemos fazer?
Podemos pensar em maneiras de reduzir o consumo, reutilizar e reciclar.
Uma maneira simples de reduzir o consumo de insumos minerais a base fósforo na agricultura na verdade não é uma idéia totalmente nova. A resposta vem na forma de uma tecnologia social chamada de biomanejo, que é baseada na associação simbiótica entre um pequeno fungo e as raízes das plantas chamadas "micorrízicas". A simbiose, que é uma relação ganha-ganha, ocorre quando o fungo se liga às raízes. Esse fungo cresce mais rápido e é mais eficiente na busca de fósforo do que as próprias raízes. Assim, ele fornece fósforo que estava no solo, mas não pôde ser absorvido pela planta e, em troca, a planta o nutre. Portanto, usando a associação micorrízica, é possível reduzir a quantidade de fertilizantes químicos necessários para uma cultura. Neste vídeo, o Dr. Mohamed Hijri explora o uso de micorriza para otimizar o uso de fósforo para fins agrícolas.
Além disso, é interessante que existam subsídios tanto técnicos quanto financeiros que fomentem uma transição agroecológica do plantio. Isso envolveria parceria com universidades e órgãos de pesquisa como Emater e Embrapa, além de financiamento público preferencial para pequenos produtores, já que o agronegócio não se dedica à produção de alimentos, e sim de bens primários (commodities) para exportação. Para saber mais sobre a agroecologia - uma tecnologia social - como construção contra-hegemônica, recomendo ler esse texto da Talita.
Outra maneira de reduzir o consumo seria incentivar dietas com menos alimentos intensos em fósforo, ou seja, uma redução de carnes e laticínios.
Sobre a reutilização, podemos pensar em reduzir as perdas na cadeia alimentar, na lixeira e no esterco de animais, por exemplo. Essas são todas as fontes de fosfato que não podem ser negligenciadas.
No que diz respeito à reciclagem, é importante destacar o uso seguro de águas de esgoto doméstico para fins agrícolas. A ONU-Água tem um projeto sobre esta questão que pode ser baixado aqui. Seu uso já é maior que o esperado! Quase 100% do fósforo ingerido nos alimentos é excretado. O tratamento de esgoto como forma de recuperar o fósforo presente nos excrementos humanos, embora controverso, já está sendo realizado na Suécia, por exemplo. Como a população está crescendo e grande parte dela já se estabeleceu e continuará se adensando em áreas peri-urbanas em mega-cidades nos próximos anos, uma grande atenção deve ser dada a esses locais. Eles estão se tornando um 'ponto quente' para a produção de fosfato.
Texto originalmente publicado em 07 de janeiro de 2018 em
Bárbara está no twitter e no instagram como @taiobarbara e pode ser contactada pelo email ba.zambelli@gmail.com