Autores
Novos afazeres
Atualizado: 7 de abr. de 2021
Plante uma árvore
Escreva um livro
Tenha um filho
Precisamos rever esta famosa lista de afazeres para uma vida completa que andaram nos vendendo.
Vivemos em um planeta com aproximadamente 7,8 bilhões de pessoas, isso implica em 7,8 bilhões de pegadas ecológicas. Uma tentativa de contabilizar o impacto ambiental individual para avaliar a pressão de cada ser humano no ambiente é desafiadora, e chocante quando apresenta resultados sobre a necessidade de mais de uma Terra para comportar a exploração de seus atributos.
Sou uma entusiasta da restauração florestal, o mínimo que se espera de uma humanidade que degrada um ecossistema é sua recomposição, pelo menos em termos de funções antes desempenhadas. No sentido contrário, os biomas brasileiros, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, sofreram um desmatamento acumulado desde o século XVI por volta de: 85% da Mata Atlântica (até 2014); 54,2% do Pampa (até 2009); 49,1% do Cerrado (até 2010); 46,6% da Caatinga (até 2009); 15,4% do Pantanal (até 2009); e 15,4% da Amazônia (até 2015, em relação à área da Amazônia Legal- ver infográfico abaixo para mais informações).

Foto: Grande Samaúma, FLONA Tapajós (Bárbara Zambelli, 2017)
Arte: Mãe natureza (Luciana Gontijo, 2020)
Em decorrência de tanta devastação é imprescindível o cumprimento do acordo ratificado pelo Brasil de restaurar 12 milhões de hectares até 2030 e de se comprometer com a Década da ONU sobre Restauração de Ecossistemas.
Os benefícios da restauração ecológica se misturam aos benefícios provenientes das florestas:
solo menos exposto e, portanto, protegido da erosão;
solo com mais matéria orgânica para a ciclagem de nutrientes e, por isso, mais fértil;
mata preservada e, menos corpos d’água assoreados e poluídos, consequentemente, mais água limpa e abundante;
maior proteção à natureza e menor necessidade de empreendimentos artificiais;
menos asfalto e, com isso, maior a infiltração de água no solo e maior a recarga dos lençóis freáticos;
mais conexão de fragmentos de vegetação e maior diversidade de plantas e animais;
mais árvore de pé, maior a captura de gás carbônico e mais puro o ar;
possibilidade de interações humanas de lazer, recreação, e extrativismo de madeiras, frutos, óleos e outras dádivas.
Entretanto, ações restaurativas não são transformadoras por si só. É preciso refletir sobre o que gerou e gera a degradação do meio ambiente e repensar o modo de vida hegemônico e seus efeitos climáticos, que resulta, por exemplo, na extinção de espécies e na aceleração da nossa própria extinção, e na desertificação de várias regiões do planeta. Do mesmo modo que, quando estamos doentes, não apenas tratamos dos sintomas, mas investigamos a causa da doença e tratamos o problema pela raiz. Isso sem contar que o plantio irresponsável de árvores não soluciona, sozinho, problemas ambientais e deve ser acompanhado de planejamento e ações integradas.
Além do mais, áreas de outras fitofisionomias (vegetações características que se encontram em um lugar específico, como dentro dos biomas - a “cara vegetal” de um local), como o campo no Cerrado, não são ambientes florestais e, portanto, não devem ser restauradas com vegetação arbórea.
Estamos na chamada Era da Informação, com avanços tecnológicos, comunicação descentralizada e disponibilização de dados, além da organização de uma prática antiga de manipulação de notícias hoje conhecida como fake news. Outra questão importante é o analfabetismo contemporâneo, que no Brasil corresponde a cerca de 11 milhões de pessoas que não sabem ler e escrever. Contudo, para entender uma realidade complexa como a nossa, não basta absorver informações ou saber decodificar letras, é preciso uma leitura de mundo. Mais do que ter ações contra o analfabetismo absoluto, é preciso incluir na luta o iletrismo (falta de compreensão da leitura), o analfabetismo funcional (falta de compreensão do significado) e o tecnológico (dificuldade de lidar com instrumentos tecnológicos).
A combinação do desmatamento e da desinformação é letal e se relaciona diretamente com uma pandemia como a de Covid-19 que estamos vivendo. As acusações sofridas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, em decorrência da divulgação dos dados sobre o monitoramento do desmatamento na Amazônia, são um exemplo da tentativa de encobrir ações governamentais de desmonte das políticas ambientais desacreditando o sério trabalho que o INPE realiza. Isso - reiterado por parte do poder público - soma-se à desinformação e manipulação discursiva que disseminam ideologias de negação das mudanças climáticas, da existência (e, consequentemente, das causas) da atual pandemia, e até mesmo da importância da vacinação para conter o avanço de doenças de saúde pública. Além disso, cientistas alertam que a derrubada da vegetação obriga os vírus a buscarem novos hospedeiros, e o tempo para a recomposição de uma floresta pode não ser rápido o suficiente para impedir o aparecimento de outra pandemia.
Infográfico desenvolvido por Luciana Gontijo.
O escritor Paul Preciado, em seu artigo ‘Aprendendo com o vírus’, menciona o que disse o filósofo Derrida: “o vírus é por definição o outro, o estrangeiro, o estranho”. Nossa sociedade vive em uma constante guerra ao Outro. Lembremos que somos uma espécie animal, definida assim pela característica de ser formada por indivíduos semelhantes e capazes de se reproduzir, reprodução que visa sua continuidade como conjunto.
Vamos acelerar o processo de extinção da nossa espécie, ou vamos possibilitar que a humanidade, enquanto espécie com capacidades subjetivas e coletivas, se desenvolva humanamente no tempo geológico natural? Vamos, no tempo histórico-cultural, nos afogar em crises múltiplas, ou vamos criar as condições para que a humanidade prospere socialmente de maneira plena, universal, justa e equitativa?
A poeta Geni Guimarães, em seu poema ‘Visão de Mim’, diz:
Plantei árvores
e poeta, fiz poemas redondos.
Do ventre,
extraí minhas raízes
saudáveis de negrume e altivez.
No entanto,
o acabado me indefine
e o gosto do que fiz
me incompleta.
Sou inacabada
até que a morte me separe.
Será que se dermos prioridade à solidariedade e à responsabilidade comunitária contribuiremos em conjunto para um mundo vivo com pessoas vivas?
Talvez possamos nos propor novas ambições:
Preservar uma árvore
Compreender um livro
Acolher um(a) filho(a)
[Nota da editora: Esse artigo expressa a opinião pessoal da autora. Essas opiniões não necessariamente refletem um posicionamento oficial d’a_Ponte]

Júlia Benfica é curiosa e criativa, talvez por isso caminhe entre ciências e artes. Nasceu em Belo Horizonte, morou em Brasília e hoje está em Piracicaba, e ainda transita entre esses locais, e muitos outros. É graduada em Engenharia Florestal pela Universidade de Brasília, mestre em Geografia pela Universidade de Minas Gerais e doutoranda em Ecologia Aplicada na Universidade de São Paulo. Busca a sinergia entre os seres e acredita no fazer coletivo como elaborador do bem comum.