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O modelo de exploração do garimpo: sua caminhada histórica e o contexto no século XXI
Atualizado: 7 de abr. de 2021
Como narrou Pero Vaz de Caminha, é desde o primeiro contato com a “Terra de Vera Cruz” que os portugueses almejavam encontrar reservas de ouro. A carta é o primeiro documento escrito em terras brasileiras no ano de 1500. Neste contexto, os países europeus eram guiados pela política mercantilista e visavam, por meio de monopólios e medidas fiscais protecionistas, o acúmulo de metais preciosos como forma de enriquecimento do Estado. Mas levou quase 2 séculos para os portugueses descobrirem os primeiros vestígios de riqueza mineral em terras brasileiras.
Inicialmente, a economia colonial foi marcada pela exploração de algodão, tabaco e pelos grandes engenhos da cana de açúcar. Foi em meio a esse cenário que Portugal desenvolveu uma grande dependência com a Inglaterra, influência que se intensificou nos meios políticos, militares e principalmente no contexto econômico por meio de uma grande dívida externa. Para balancear os cofres públicos, a coroa portuguesa passou a estimular buscas de minerais preciosos em sua colônia brasileira. Os resultados dessa busca apareceram em meados de 1690, com a descoberta das primeiras jazidas nas Minas Gerais.
Quando esgotou o ouro de aluvião, as técnicas de mineração foram se modernizando. A presença do garimpeiro passou então a ser exigida constantemente nas minas e, para sustentar a estadia, novas vilas apareceram na região. É neste período, por exemplo, que surgiu a cidade de Ouro Preto, história que a Bárbara narra um pouco aqui.

Mineração de ouro por lavagem perto do morro do Itacolomi, Ouro Preto (Johann Moritz Rugendas, entre 1820 e 1825). (Foto: Wikimedia Commons)
Se, por um lado, o ouro levou prosperidade para os negócios além da mineração (e para as mãos de uma pequena classe), por outro, a força de trabalho da produção aurífera passou por episódios de negligência e imprudência. A mão de obra - escravizada, em sua maior parte - era exposta a diversos riscos na lavra. Além das longas jornadas de trabalho, o desmoronamento do teto nas minas era corriqueiro, e a falta de luminosidade e ventilação contribuíram para a proliferação de doenças e outras complicações físicas.
Pouco mais de três séculos após a eclosão do ciclo do ouro, os problemas relacionados às atividades minerárias predatórias causam efeitos nas esferas social, ambiental, política e econômica, e afetam diretamente grande parte da população inserida em seu contexto, conforme veremos adiante. Mas, antes de prosseguirmos, convido o leitor a entender que a atividade garimpeira é considerada ilegal se não anda em conformidade com a lei de número 7.805, de 18 de julho de 1989, que pode ser conferida aqui.

Hoje, podemos admirar Ouro Preto e o estilo arquitetônico do barroco mineiro por meio das casas e igrejas do centro histórico da cidade. (Foto: Joana Morais)
O mercúrio e a questão ambiental
Reconhecendo a necessidade de minimizar os riscos causados pela emissão do mercúrio e seus agentes químicos, o Brasil tornou-se, em agosto de 2018, signatário da Convenção de Minamata. O objetivo deste tratado é a proteção humana e ambiental das emissões do metal e seus compostos com propostas de proibições, reduções e até na eliminação, quando possível, das produções antrópicas. No Brasil, um dos grandes problemas socioambientais relacionados ao garimpo ilegal é o uso indiscriminado do mercúrio.
Esse metal pesado é usado para separar o ouro de aluvião dos demais sedimentos do rio. Isso é possível por que os dois elementos formam, juntos, uma liga chamada amálgama, que, devido às propriedades físicas e químicas, torna-se possível diferenciá-la dos demais sedimentos do rio, como terra e cascalho. Logo, ela passa por um processo de aquecimento onde o ouro é finalmente obtido enquanto o mercúrio é descartado na natureza. Nas águas, o elemento reage e intoxica plantas e peixes e, quando chega ao consumo humano por meio de um processo chamado bioacumulação, pode causar deformidades físicas e problemas neurológicos. “O mineral na água não é suficiente para causar problemas para a população. O problema é quando ele é transformado em compostos orgânicos, aí ele entra na cadeia trófica, das plantas aos peixes”, afirma Bruce Forsberg, especialista em ecossistemas aquáticos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). O processo de bioacumulação é um fenômeno no qual os seres vivos acumulam no organismo diferentes níveis de um agente químico e, ao estabelecerem relações nutricionais entre si, transportam uns aos outros esses níveis de toxicidade. Em humanos, a intoxicação acontece também pelo consumo de peixes contaminados. O mercúrio do garimpo encontra o povo Yanomami
Um estudo realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), diagnosticou, em 2016, a intoxicação de indígenas por bioacumulação ao mercúrio oriundo da atividade garimpeira na Terra Indígena Yanomami. O grupo de pesquisa visitou o interior de Roraima em duas regiões: a do Paapiú e de Waikás.
Ao todo, foram coletadas 35 fragmentos de peixes que fazem parte da dieta da população e outras 239 amostras de cabelo. Na região do Paapiú, 6,7% dos exemplares coletados apresentaram altos índices do metal. Em Waikás, os resultados apontaram que 27,6% apresentavam índices preocupantes de mercúrio. Comunidades indígenas: vulnerabilidade histórica e a COVID-19
Além da ameaça química do mercúrio, as comunidades indígenas também convivem com o medo da pandemia causada pelo novo coronavírus. O contágio por agentes infecciosos, no entanto, não é inédito entre a população: o antropólogo Henry F. Dobyns descreveu como “cataclismo biológico” o efeito das sucessivas infecções nos povos ameríndios, importadas pelos invasores europeus. Em abril deste ano foi registrado o primeiro caso de COVID-19 num adolescente de 15 anos. Para o ISA, o fluxo dos mais de 20 mil garimpeiros é o principal vetor da doença na Terra Indígena Yanomami. As comunidades indígenas são mais vulneráveis ao avanço da COVID-19, e a onda de invasões em seus territórios dificulta o combate ao vírus. Até o fechamento deste artigo, foram registrados 40 óbitos e 824 casos entre esses povos.
“A história das relações entre índios e brancos no Brasil ensina que as armas de conquista foram alguns apetites e ideias, um equipamento mais eficiente de ação sobre a natureza, bacilos e vírus – sobretudo vírus.” (Darcy Ribeiro).
Diante da intolerância e discriminação enfrentada por esses povos no Brasil, é importante ressaltar que a demarcação e a proteção das terras indígenas é direito garantido pela Constituição Federal de 1988. Mas, apesar de elas não serem estabelecidas para esta finalidade, contribuem com importantes mecanismos de defesa à biodiversidade, e também no manejo sustentável desses ecossistemas.
O garimpo, principalmente de ouro, segue sendo, há mais de três séculos, uma forma de espoliação de terras, povos e ecossistemas. E a escalada dos garimpeiros ilegais atualmente, a tentativa de flexibilização da legislação de proteção sócio-ambiental pela MP-910, bem como a invasão de terras indígenas próximas às zonas de extração desse metal, têm se dado em velocidade consonante ao pico do preço do ouro no mercado financeiro.
[Nota da editora: Esse artigo expressa a opinião pessoal do autor. Essas opiniões não necessariamente refletem um posicionamento oficial d’a_Ponte]

Joana Morais é mineira de coração e cresceu vendo a Serra do Curral paralela à sua janela, em Belo Horizonte. Quando criança, acompanhava a família nas caminhadas ecológicas pela Serra do Cipó. Até hoje, quando pode, bebe das águas do cerrado mineiro e caminha pelas trilhas do Espinhaço. É graduanda em Geologia pela Universidade Federal de Minas Gerais e mãe orgulhosa de várias plantas e amostras de rocha e mineral.