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Para reaprender a ler e escutar, uma imagem da Terra como globo
por Daniel Grimoni

O astrônomo e cartógrafo grego Hiparco, da escola de Alexandria, século 2 a.C.
Em seu livro A invenção da Terra, o geógrafo italiano Franco Farinelli faz um panorama por diferentes concepções da Terra, que existiram ao longo dos séculos, e seu lento trabalho de elaboração coletiva. Partindo do Gênesis bíblico, passando por narrativas babilônicas e gregas, por dilemas filosóficos da Europa medieval, pelas empreitadas marítimas da colonização moderna, Farinelli chega enfim ao tempo em que vivemos hoje, com a globalização, as tecnologias digitais e a internet compondo nossa relação com a Terra.
O estado atual das coisas, para o autor, torna impossível que continuemos a olhar o mundo como se fosse um mapa — ou seja, como se fosse uma tábula plana, mais ou menos fixa, linear, imóvel. Em vez disso, propõe ele, o mundo que habitamos hoje não apenas é um globo, mas mais do que nunca funciona, na experiência que temos dele, como um globo. Isso a que chamamos de globalização seria para Farinelli, inclusive, “antes de tudo a impossibilidade de continuar a fingir que a Terra não é o que é, um globo”.
Nesses tempos em que, dia após dia, precisamos disputar a eficiência de vacinas, a existência de mudanças ambientais e o formato da Terra, para citar só algumas das crises de sentido contemporâneas, talvez seja um pouco estranho falar nessa impossibilidade. Mas, aqui, proponho uma outra provocação: será que mesmo nós que consideramos a Terra um globo (ou um geóide, se preferir) temos o costume de considerar, também, os desdobramentos que essa afirmação implica?
Segundo Farinelli,
se o mundo é uma tábula, um mapa (e apenas se é uma tábula), ele tem um único centro imóvel e a proximidade das coisas nele implica que sejam afins e voltadas na mesma direção. Mas se o mundo é um globo, todos os pontos podem ser o centro, ou seja, o centro é plural e móvel e, em consequência, a proximidade das coisas não implica em sua homogeneidade e isotropismo [...] O mundo é um globo, ou seja, algo funcionalmente descontínuo, não homogêneo, anisotrópico, não um universo, mas um pluriverso.
Nessa consideração, o mundo em que vivemos é hoje o que, de certa forma, ele sempre foi, mas que cada vez mais revela ser: algo composto pela sobreposição, convivência, bricolagem entre inúmeras experiências e perspectivas possíveis. Se nós quisermos imaginar as de outras espécies, então, o mundo começa a parecer impossível de considerar em sua totalidade. E não seria mesmo assim?
Em certo nível, o mundo que habitamos é mesmo um mundo. Isso fica muito claro se olharmos, por exemplo, para como as atividades industriais em certas regiões do planeta influenciam outras muito distantes (quando não o planeta como um todo). Essa é apenas uma das questões que os últimos anos vêm trazendo à tona, com a constatação de que o impacto da ação industrial humana sobre o planeta se tornou tão grande que nos deslocou para um novo período geológico, o Antropoceno.
Ao mesmo tempo, no entanto, se prestarmos atenção à produção e circulação de sentidos em nossa experiência de vida, bem como às limitações de nossas perspectivas (como indivíduos, povos ou espécies), o mundo que habitamos são, na verdade, inúmeros mundos. Ou, dizendo de outra forma, um mundo com inúmeros centros, que se atravessam, dialogam ou conflitam; cada um com seus desdobramentos e relações de sentido, às vezes muito próprias. Isso é um ponto importante dessa discussão.
Aqui, no entanto, quero propor uma pergunta específica, que a princípio pode parecer um desvio sem muita relação; mas vivemos em um globo, afinal. Vamos girar com ele um pouco.
A pergunta é: o que essa imagem da Terra pode nos sugerir sobre as nossas práticas de leitura e escuta?
As ideias de poesia ou literatura, por exemplo, cada vez mais são compreendidas, por boa parte do campo de estudos literários e linguísticos, como categorias que têm a ver com certas formas de recepção dos textos. Ou seja, considerar algo como poesia ou literatura diria mais respeito às maneiras pelas quais lemos e escutamos certos textos, inseridos em nossos contextos sociais, do que à existência de alguma característica essencialmente literária ou poética que seja própria ao texto, ao seu estilo, à sua estrutura, etc., ainda que algumas escolhas formais possam influenciar nesse processo de percepção.
[Para quem quiser saber um pouco mais sobre essa discussão, a respeito do conceito de literatura, particularmente, a introdução do crítico inglês Terry Eagleton a seu livro Teoria da literatura: uma introdução oferece um panorama interessante, apresentando as propostas e limitações de algumas correntes de pensamento literário e tentativas de definição.]
Cabe ainda mencionar que o termo poesia, por exemplo, é utilizado mundo afora, cotidianamente, para nomear desde fatos linguísticos até eventos independentes das produções humanas, como certas paisagens, certas sonoridades, etc. Algo na história e nas possibilidades do termo permite essa amplitude de uso, que é importante de ser reconhecida e pensada. Da mesma forma, um texto pode ser muitas coisas. Mas por aqui, nos próximos parágrafos, podemos considerar principalmente a linguagem humana, em suas manifestações diversas.
Em cursos e oficinas de poesia, por exemplo, ou quando nos deparamos com algo que se apresenta como um poema em prosa, um poema visual, um poema sonoro, é comum ouvirmos ou fazermos a pergunta: “mas o que exatamente é poesia, ou um poema? por que chamar isso ou aquilo de poema?”. Parece que não existe resposta final a essa pergunta, o que nos retorna, mais uma vez, ao globo e à invenção da Terra.

Poema visual do poeta austríaco Ernst Jandl (1964).
Em seu livro, Farinelli comenta como foi complicado, para os eruditos da Europa medieval, conciliar (por uma necessidade da Igreja, principalmente) dois modelos de mundo que, cada vez mais, pareciam inconciliáveis. Um deles era o modelo do ecúmeno cristão, uma Terra como extensão plana, que teria sido criada conforme estava descrito no Gênesis e onde habitava a humanidade. O segundo era o modelo proveniente das observações da astronomia grega, ao qual muitos estudiosos medievais davam preferência, que apontava para a Terra, como um corpo celeste, sendo esférica como os demais (ainda que no centro do cosmos, até que a revolução de Copérnico afirmasse a centralidade do Sol e a translação do nosso planeta ao seu redor).
Um dos grandes problemas dessa complicação, segundo Farinelli, foi o seguinte:
o que aconteceria se a Terra fosse concebida como esférica e o ecúmeno não tivesse sido imaginado como plano? Evidentemente o centro da Terra, não mais plana, mas esférica, seria dentro, subterrâneo, o que levaria a uma consequência desastrosa: os centros sagrados que eram orientados pelo centro da Terra iriam se perder de vista. Estariam, portanto, invisíveis e completamente inacessíveis [...]
Considerar a Terra como esfera ou globo, portanto, seria perder de vista qualquer possibilidade, ao menos na nossa experiência corporal, de estar em contato com o seu centro absoluto. Habitando a superfície desse globo, a condição compartilhada por toda a gente — e os demais seres viventes que conhecemos — é a de não ocupar nenhum tipo de centralidade, uns em relação aos outros, que não seja relativa, arbitrária, tomada a partir de um referencial móvel e dinâmico, passível de ser alterado.
É isso que imagino que os textos considerados por nós como poemas frequentemente propõem para a nossa leitura e escuta, através de movimentos e estratégias diversas. A própria tendência de muitos desses textos a escapar de categorias, ou caber nelas com alguma dificuldade, parecendo ficar mais bem situados nos limites entre uma definição e outra, também aponta nesse sentido.
A provocação que trago no título do texto é na verdade algo que estamos sempre fazendo, já que cada leitura ou escuta — seja de textos escritos e falados ou do mundo à nossa volta — é sempre outra, a cada vez que se realiza. Ao menos, é o que acontece quando nos permitimos um movimento mais aberto, no contato com cada texto, e para pensar esse movimento pode ser útil a discussão feita por Farinelli a respeito da Terra. A leitura, ou escuta, é aberta e sempre outra, retomando a imagem, se não considerarmos os textos como tábulas: planos, rígidos, homogêneos.
Se a poesia tem algo a ver com a nossa recepção (ou postura, poderíamos dizer) diante de certos textos e da nossa experiência de mundo, essa postura pode ter algo a ver, justamente, com o funcionamento da Terra como um globo. Nesse entendimento, lidar com um texto como poema seria considerar radicalmente que “todos os pontos podem ser o centro, ou seja, o centro é plural e móvel”. Um poema se torna, então, um aprendizado da descentralização, da horizontalidade e da não hierarquia — e nenhum sentido, procedimento, camada linguística, recurso criativo pode ser considerado (de forma absoluta, universal) mais relevante do que os outros, a chave para a compreensão de um poema, etc.
Essa possibilidade de encarar a recepção de um poema, ou de qualquer texto, não é a única, claro. Mas a imagem de um globo dinâmico, um pluriverso, parece servir para uma série de práticas de leitura e escuta que são como ferramentas ou posturas para, frente a um texto, não considerá-lo uma peça monolítica, com sentidos únicos, mas sim algo múltiplo, compartilhado, com possibilidades abertas e desvios possíveis. Essa maneira de lidar com o sentido, ou os sentidos, é também algo que podemos considerar uma postura poética — no sentido original do termo grego poiesis, como criação, ato criativo.
A imagem, no entanto, é uma via de mão dupla. Se o poema é um globo, também o globo pode ser um poema. Nesse sentido, o que podemos aprender com a experiência da poesia para transformar nossa relação com o mundo?
Uma das respostas possíveis está justamente em pensarmos sobre aquele aprendizado da descentralização. Isso porque um texto, quando nos aproximamos dele como um poema, que se reposiciona a cada nova experiência, nos mostra que nossa perspectiva, situada e parcial, nunca é completa, nunca "dá conta". Nossa perspectiva, na verdade, está sempre se complementando a partir da escuta e do convívio com a diferença, com outros ângulos e outras posições. Quem pode dizer, então, salvo por um trabalho coletivo de sentidos, que conhece melhor um poema — ou essa Terra que habitamos?

Arte de Édouard Riou para Viagem ao centro da Terra (1874), de Júlio Verne.

Daniel Grimoni é poeta, estudante de Letras na UNIRIO e professor de Linguagens no pré-vestibular social Leonhard Euler. É autor de Todo (o) corpo agora (2019), livro de poesia. Faz parte da equipe editorial da Revista Tropel, ligada à escola de Letras da UNIRIO, que propõe atravessamentos entre educação e linguagens. Estuda questões ligadas às relações entre arte, educação e ecologia.