Talita Gantus
Pesquisador faminto e o papel da luta política
por Talita Gantus
Certo dia, no meu passeio de bicicleta pela cidade onde moro, me deparei com esse retrato:

Foto: Talita Gantus.
Fiquei pensativa sobre como ele me atravessava em diversos lugares, e esse texto nasce dessas angústias e incômodos. Moro em Barão Geraldo, distrito de Campinas, SP. Para quem se recorda das aulas de história, a região de Campinas compreende-se no antigo pólo cafeicultor que data de tempos coloniais (se é que já transcendemos esses tempos) e ergue-se sobre o latifúndio escravocrata.
Muitos desses latifúndios se mantêm sob a mesma forma e conteúdo, embora com algumas modificações: ao longo dos séculos, o café foi em grande parte substituído pela cana e pela soja, hoje acompanhados de uma fronteira que precisa se expandir, tendo em vista que a monocultura (do plantio e da mente) esgotou os nutrientes do solo. Cupinzeiros despontam aos montes como bioindicadores do desequilíbrio ecológico desse bioma que, um dia, sustentou flora e fauna endêmicas da transição Mata Atlântica e Cerrado. O latifúndio já se confunde com o que “marcaria”, de uma perspectiva da geografia vulgar, os limites entre rural e urbano (esquecendo-se da floresta).
Para driblar as poucas brechas na lei (como a função social da propriedade) que questionam o direito burguês inalienável da propriedade privada, muitos desses herdeiros da aristocracia colonial espalham algum pouco gado sob o sol escaldante, alimentado por rações transgênicas e envenenadas de agrotóxicos, para fingir, cinicamente, que não há ociosidade da terra — estariam, assim, ““ocupadas””.
Mais interessante a eles, obviamente, fingir preencher o vazio de um território improdutivo enquanto especulam para lucrar com a renda da terra, refletindo na dinâmica imobiliária, seja ela rural ou urbana. E, consequentemente, no preço dos aluguéis. Falarei disso mais adiante. No que se refere aos custos do processo produtivo, é mais lucrativo para o latifundiário, dentro do que se propõe o modo de produção capitalista, expandir a fronteira agrícola enquanto aguarda o melhor momento de usar a terra infértil para loteamentos destinados à classe média alta. Uma outra alternativa envolveria recuperar, rotacionar e reutilizar, para um novo plantio, a sua porção de terra (passada adiante pelos seus ascendentes escravocratas); mas a propriedade, dentro do direito burguês, confere poder econômico e, portanto, político.
Barão Geraldo, para um olhar atento, é um retrato que não nos deixa esquecer do Brasil colonial e do apartheid casa grande e senzala:

Armazém em Barão Geraldo/Campinas, SP. Foto: Talita Gantus.
É aqui que nasce a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde faço meu doutorado. Uma região bastante arborizada — embora com rios poluídos e nascentes que resistem ao esgoto e aos fluxos de agrotóxicos —, onde mansões de muros altos cercados por câmeras se misturam com enormes vazios circundados por rodovias.
Lembremos ainda que a industrialização brasileira, ditada pelo imperialismo estadunidense, fez dessa região, entre outras coisas, um pólo da indústria automobilística e petroquímica, como bem explica o economista Wilson Cano. Precisava-se de estradas para sustentar esse novo modelo de consumo carrocrático, o que fez de São Paulo um estado rodoviarista. Aqui, a cidade é planejada para carros. Certo dia, por exemplo, pedalando na parte a mim designada pelo Código Brasileiro de Trânsito — ou seja, correndo risco próximo ao meio-fio, com carros que não respeitam o distanciamento de 1,5 metro — um motorista gritou aos berros: “sai da rua!”.
Sai da rua! Para onde, meu caro?! Pra casa? Que é lugar de mulher? Ou pra vala, que é pra onde o sistema tem lançado ciclistas com esse planejamento urbano capitalista conivente com tantas mortes no trânsito por atropelamento?!
Esse modelo de cidade segregada acompanha um princípio higienista e racista, como bem nos ensinam Milton Santos e Ermínia Maricato, que já circularam em vários textos meus por aqui. Barão Geraldo é um distrito de classe média alta a classe alta, e a maior parte das pessoas que moram aqui pertencem à comunidade universitária. Mas, é claro, há aí um recorte de classe e raça. As trabalhadoras e os trabalhadores da limpeza e da segurança da Unicamp, que são terceirizadas/os, não moram em Barão Geraldo. Moram, aliás, muito longe e enfrentam longos trajetos diários de ida e volta, constituindo aquilo que Milton Santos nomeia de fluxo migratório pendular. Não tenho dados publicados que comprovem isso. Aqui vocês terão que confiar no meu relato, construído a partir de conversas com essas pessoas, em tempos remotos de vida universitária presencial (pré-pandemia). Mas, certamente, vocês já vivenciaram ou devem ter ouvido histórias semelhantes que se repetem no Brasil inteiro.
Barão Geraldo é também uma das áreas de Campinas que possui índices de qualidade de vida entre os mais altos do mundo, superiores ao IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de países como Noruega, Suíça e Austrália. Esse é um dos resultados do “Atlas de Desenvolvimento Humano da Região Metropolitana de Campinas”, realizado pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). A renda mensal per capita (a média de renda por pessoa em um mês) das regiões mais ricas, como Barão Geraldo, é de R$ 4.536,72 — mais de 10 vezes superior à das regiões de menor IDH, como Conjunto Habitacional Olímpia, Pauliceia e Residencial Chico Amaral, onde a renda per capita é de apenas R$ 422,38. Regiões bastante distantes de Barão Geraldo, como pode ser observado numa rápida busca no Google Maps.
Segundo o Atlas, as desigualdades se refletem também na educação: mais de 70% dos moradores acima de 25 anos de regiões mais ricas têm ensino superior completo; em regiões mais empobrecidas, o índice de moradores que cursaram faculdade não chega a 0,74% do total de habitantes.
Lembram que a cidade é rodoviarista?! E que o transporte público é de péssima qualidade, talvez seja redundante dizer, visto que se trata de uma constante no Brasil, já que o poder de decisão sobre esse equipamento público está nas mãos do capital das empresas de ônibus. E o que isso gera? Um apartheid social marcado pela segregação espacial, racializada e classista.
A geografia de Barão Geraldo, ilhada pelos latifúndios agrários, mansões, vazios (que eram latifúndios agrários e virarão mansões) e kitinetes de 15m² alugadas pelo preço de uma bolsa de mestrado (há 8 anos cotadas em R$1.500) perpetua a lógica colonial. É uma cidade dos brancos, ricos, com acesso a uma qualidade de vida que se reflete nos índices acima mencionados, pertencentes ou à elite burguesa (que detém o poder material, visto que detém a renda da terra e os meios de produção de commodities) ou à elite intelectual (que detém o poder simbólico, visto que detém os meios de produção discursiva). Não se submetem ao desgastante fluxo migratório pendular, porque têm acesso a carro, mesmo com a gasolina a um preço exorbitante, e porque já moram em uma região privilegiada e sustentam o acesso à moradia mesmo com a altíssima especulação imobiliária.
Como faz o/a pesquisador/a que não é herdeiro/a, que não conta com o apoio financeiro — e muitas vezes nem afetivo — de suas famílias, para seguir seus estudos, que são na verdade um trabalho mal remunerado? Pagar um aluguel que é o preço do salário ou morar do outro lado da cidade e enfrentar um transporte público em péssimas condições, que demora longas horas de ida e de volta, com um valor altíssimo (passagem cotada atualmente em R$4,95)? Pagar o aluguel ou a comida? O que é prioridade? Essa deveria ser uma escolha justa?
Um estudo apresentado pelo presidente do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap), Odir Antônio Dellagostin, apontou uma defasagem acumulada no valor das bolsas de 60% desde o último reajuste em 2013 (ou seja, diminuição em 60% do poder de compra, se levarmos em conta a inflação). Para recuperar essa perda, calcula Dellagostin, seria necessário aumentar as bolsas de mestrado dos atuais R$1.500 mensais para R$2.400 e as de doutorado de R$2.200 para R$3.520.
Nesse texto aqui, “Pesquisador é profissão?”, exponho o crítico cenário de remuneração e das condições de trabalho de pesquisadores/as no Brasil e levanto indagações sobre os rumos do setor de desenvolvimento humano, científico e tecnológico brasileiro, tendo em vista que o modo de gestão neoliberal tem sucateado cada vez mais o ensino público e nossas agências de fomento à pesquisa. O corte imposto pelo teto de gastos, preconizado em 2016 pela PEC 55/2016, foi pensado junto às elites em áreas que são estratégicas a um país soberano: saúde e educação. Sentimos o peso desse ajuste fiscal durante a pandemia de Covid-19, nessas duas áreas que são fundamentais para se controlar e combater uma crise social e sanitária com raízes em uma crise ecológica. Sem saúde pública não há saúde coletiva, e é o financiamento à educação pública que sustenta a pesquisa produzida no Brasil — que, de uma forma ou de outra, permitiu o sequenciamento genético do coronavírus (realizado por uma mulher negra, importante lembrar).
O desmonte na pasta da educação e pesquisa, tão claro no mais recente corte do Projeto de Lei (PLN) nº 16/2021, que legisla sobre corte de 92% de recursos em ciência, tecnologia e inovação, faz parte do pacote de um determinado projeto de país. Como disse no outro texto, “a disputa que precisamos travar reside na necessidade de avançarmos rumo à soberania intelectual nacional”. Mas essa luta não se dá em um campo oposto ao político. Ciência é política, conhecimento é político; mas, mais que isso, a reprodução da vida é política. Manter as condições para que se reproduza a capacidade de trabalho — ou seja, acesso a moradia, saúde, alimentação, lazer, mobilidade, etc. de qualidades —, apesar de (na lógica do capitalismo) ser responsabilidade do/a próprio/a trabalhador/a, faz parte das demandas mais urgentes levantadas pela luta de classes. Afinal, é no baixo valor da nossa força de trabalho que os capitalistas extraem aquilo que Marx chama de mais-valia relativa. Como o valor da força de trabalho é socialmente determinado, trata-se, portanto, de uma disputa coletiva, não individual.
Por isso, pesquisadores brasileiros/as precisam se engajar na luta política material e concreta: pois o desmatamento e a crise ecológica nos afetam, porque promovem injustiça climática e hídrica, que têm como consequência a crise energética, cujo ônus sempre é colocado nas costas do consumidor. A carência de reforma agrária e reforma urbana no país do latifúndio colonial e das capitanias hereditárias coloca nosso território nas mãos do capital estrangeiro. Seja pela determinação de um país primário-exportador, seja porque 620 mil km² de solo urbano, em várias cidades do Brasil, estão nas mãos de 9 empresas incorporadoras imobiliárias listadas na Bovespa (a Bolsa de Valores de São Paulo), que concentravam, em 2014, o equivalente 37 bilhões de dólares em terra, segundo Raquel Rolnik — o que influencia diretamente no preço do nosso aluguel e na falta de acesso à moradia digna. A produção de commodities do agronegócio, no lugar da produção de alimento saudável em um país tropical, tão fértil e biodiverso como o Brasil, nos coloca reféns de comidas banhadas em agrotóxicos. Se você não está no rol da lista de bilionários da Forbes, sinto dizer, mas essas crises múltiplas te afetam diretamente, porque sobredeterminam as suas condições de reprodução social.
Quem é pós-graduando/a no Brasil experimenta um desânimo e uma permanente ansiedade em relação ao futuro. Já não é fácil bancar as condições materiais básicas necessárias à reprodução diária da vida, que dirá planejar um futuro promissor para uma carreira fadada a uma competição miserável, baseada numa produção acadêmica fordista, desanimadora e desvinculada das reais necessidades sociais, e que não dá conta de absorver tanta mão de obra qualificada.
A luta política por melhores condições de vida, a luta pela soberania popular, não está desvinculada da vida acadêmica. Somos atravessados/as por tudo aquilo que toca o mundo real, pois a vida global se enlaça em cadeia. O capital é transnacional e é ele quem determina, por imposição de força, o modo como vivemos hoje. Determina, inclusive, a desvalorização da mão de obra acadêmico-científica nos países colonizados — os ditos subdesenvolvidos.
O que temos feito para mudar essa realidade, que é nossa?
[Leia também os textos de minha autoria relacionados ao tema: "Ciência a serviço de quem?" e "Luta feminista e ciência crítica: dois lados da mesma moeda" publicados neste blog.]

Talita pode ser contatada pelo email tgantus@gmail.com, está nas redes sociais como @gantustalita e publica textos pessoais em www.talitagantus.info
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