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  • Foto do escritorTalita Gantus

Por uma geologia decolonial

É sabido que a colonização trouxe marcas que, ainda hoje, não apenas reverberam como estruturam nossa sociedade, o que ajuda a explicar as diferenças de conformação social entre o Brasil e os outros países da Améfrica Ladina, por exemplo. O colonialismo foi um processo marcado pela expropriação dos territórios e espoliação da natureza, genocídio dos povos originários e escravização das/os negras/os trazidos de África. Mas é também um processo de opressão e exploração simbólico, de subjugação de subjetividades, cosmovisões, formas de existir. Antes de tudo, é necessário diferenciar o colonialismo da colonização. Segundo Françoise Vergès, “a colonização é um acontecimento/período, e o colonialismo é um processo/movimento, um movimento social total cuja perpetuação se explica pela persistência das formações sociais resultantes dessas sequências”.


Salinas Grandes, na província de Jujuy, no noroeste da Argentina. A paisagem se insere em um deserto de sal onde é minerada a halita (sal de cozinha). Entenda mais sobre os conflitos socioambientais que assolam a região aqui. (Foto: Talita Gantus)


Talvez nos escape a dimensão da totalidade que envolveu/envolve o processo de colonização de territórios, corpos e mentes no que se chama hoje de Sul-Global, os “países do Terceiro Mundo”. Ou talvez esse esvaziamento seja intencional, afinal, como disse Frantz Fanon, “quem domina a linguagem [a narrativa, o discurso], domina o mundo que essa linguagem expressa e que lhe é implícito.” O contexto da colonização se deu no processo da assim chamada acumulação primitiva de capital, abordado por Karl Marx em sua obra mais demonizada e, paradoxalmente, menos lida.


O capital é uma forma específica de controle do trabalho que consiste na mercantilização da força de trabalho a ser explorada.


Nesse sentido, como ressalta Aníbal Quijano, “por sua condição dominante em tal conjunto estrutural, historicamente, o capitalismo não é capaz de existir separado ou independentemente das outras formas de exploração” - como a de gênero e a de raça. O capital é colonizador. A colônia, portanto, lhe é consubstancial, tem a mesma natureza. A assim chamada acumulação primitiva, portanto, foi um processo histórico social, marcado pela expropriação de terras - os meios de produção - e a conversão dos meios de vida em capital. Isto é, o trabalho que antes era direto e ligado à reprodução da vida (agricultura, artesanato, tecelagem), foi subordinado à produção de mais-valor (o excedente que é acumulado por quem detém os meios de produção). Temos “a violência como parteira da história”, nas palavras de Virgínia Fontes.


Mas, “para entender como a colônia perdura, é preciso se libertar de uma abordagem que enxerga na colônia apenas a forma que lhe foi dada pela Europa no século XIX, e não confundir colonização com colonialismo”, afirma Vergès.


Segundo Quijano, o atual padrão de poder mundial consiste na articulação entre: (1) a colonialidade do poder, isto é, a idéia de “raça” como fundamento do padrão universal de classificação social básica e de dominação social; (2) o capitalismo, como padrão universal de exploração social; (3) o Estado como forma central universal de controle da autoridade coletiva, e o moderno Estado-nação como sua variante hegemônica; (4) o eurocentrismo como forma hegemônica de controle da subjetividade/intersubjetividade, em particular no modo de produzir conhecimento. Colonialidade do poder é um conceito que dá conta de um dos elementos fundantes do atual padrão de poder, a classificação social básica e universal da população do planeta em torno da ideia de “raça”. “Essa ideia e a classificação social baseada nela (ou “racista”) foram originadas há 500 anos junto com América, Europa e o capitalismo”. Um dispositivo criado - bem como o dispositivo de gênero, como apontam Michel Foucault e María Lugones - para justificar a dominação de uns sobre os outros. A categoria de capitalismo refere-se à como as formas de controle do trabalho se articularam como estrutura em torno do predomínio da forma salarial para produzir mercadorias para o mercado mundial. No que diz respeito ao Estado, sua ideia, como estrutura de autoridade e como forma de dominação coletiva, é muito antiga. Não está totalmente bem estabelecido desde quando e em associação com quais condições históricas ele foi imposto como a forma central universal de controle da autoridade coletiva e de dominação política, menos ainda quando, como e onde se tornou Estado-nação. Sabemos que o moderno Estado-nação é, por uma parte, relativamente recente e, de outra parte, não está consolidado a não ser em poucos espaços de dominação estatal ou países. Finalmente, o eurocentrismo é a perspectiva de conhecimento que foi elaborada sistematicamente a partir do século XVII na Europa, como expressão e como parte do processo de eurocentralização do padrão de poder colonial/moderno/capitalista. Foi mundialmente imposta e admitida nos séculos seguintes como a única racionalidade legítima, hegemônica, o modo dominante de produção de conhecimento.


No que tange ao que se propõe o presente texto - inserir a ideia do que seria pensar a geologia a partir da decolonialidade -, vou usar o exemplo da indústria bélica para trazer luz à associação entre colonialidade do poder, capitalismo e Estado. Nesse importante texto, Bárbara expôs a relação entre a mineração e a produção de armas - a 3ª atividade mais lucrativa no capitalismo contemporâneo, realizada por meio de contrabando (David Harvey, p. 40). Devido à recente polêmica causada pela absurda ampliação do acesso às armas pelo presidente Jair Bolsonaro, nessa entrevista aqui, Ilona Szabó, especialista em segurança pública, trouxe importantes reflexões sobre a quem interessa a aprovação desse decreto, e salientou o fato de que o monopólio das armas deve estar sob responsabilidade do Estado. Gostaria de questionar apenas um ponto trazido por Szabó, que o jornalismo cotidiano não nos dá a oportunidade de debruçar: “o monopólio de armas deve estar nas mãos do Estado”.


Antes, devemos nos perguntar: a quem interessa o monopólio da violência pelas mãos do Estado? Quem são as pessoas que mais morrem pelas mãos do Estado? Ainda: quem é o Estado?


O Estado que detém o monopólio do armamento - ao menos legalmente - é o mesmo Estado que se articula com (1) a colonialidade do poder (visto que baseia-se em premissas racistas de criminalização e necropolítica) e (3) o capitalismo (aqui representado pelas indústrias mineral e bélica).


A força e a violência são requisitos de toda dominação, mas na sociedade moderna não são exercidas sempre de maneira explícita e direta, mas encobertas por estruturas institucionalizadas de autoridade coletiva ou pública e “legitimadas” por ideologias. A ideologia de que o Estado é soberano e de que o monopólio da força deve estar sob seu domínio - ao menos é o que sustenta o aparato jurídico. Justamente por isso, o filósofo e jurista Silvio Almeida, se amparando em Marx, afirma que o racismo é estrutural. O Estado se vale do medo como afeto central de coesão social, como aponta Vladimir Safatle, para legitimar o biopoder. Este, um conceito criado por Foucault, consiste na prática dos estados modernos e a regulação dos que a ele estão sujeitos por meio de uma explosão de técnicas numerosas e diversas para obter a subjugação dos corpos e o controle de populações.


Não estou aqui fazendo apologia ao armamento. Mas fico me perguntando se não passa pela cabeça das pessoas, na utopia que imaginamos para construir outros mundos possíveis, a possibilidade de um mundo sem armas. O ponto central dessa questão é: não é possível um mundo sem armas no capitalismo porque a guerra é lucrativa ao capital. Por isso a manutenção de um cenário permanente de guerras, principalmente no Sul-Global, longe dos olhos dos países “desenvolvidos” embora por eles financiada, interessa aos Estados modernos burgueses.


Esse é o mesmo Estado que financia pesquisas voltadas ao interesse do capital estrangeiro. Vamos aos exemplos: a mineradora Vale S.A. injeta dinheiro para o desenvolvimento de pesquisas dentro das universidades públicas para aprimoração das técnicas que permitem à mineradora extrair ainda mais lucro. Mas, quem financia as bolsas da maioria desses pesquisadores pós-graduandos, quando vinculados à CAPES e CNPq (bolsas essas que variam da pecha de R$1.500 a 2.200), é o dinheiro público. E quem fica com o lucro extraído da mercadoria produzida pela técnica aprimorada?


O Sistema S (no qual se insere o SESI), por sua vez, fornece mão de obra terceirizada para a Anglo American, desonerando, assim, a mineradora dos encargos de direitos trabalhistas e onerando o Estado. Afinal, essa mão de obra é paga com o dinheiro público. Talvez seja interessante destacar que a solução aqui não é desempregar esses trabalhadores, mas chamo atenção para o que disse o presidente da FIEMG, Flávio Roscoe: “o SESI-MG atua de forma alinhada com os interesses da indústria da mineração”. O próprio governador de Minas, Romeu Zema, afirmou, durante sua participação no 92º Encontro Nacional da Indústria e da Construção: “queremos que a mineração seja um setor o mais pujante possível”. Voltando à indústria bélica, como Bárbara apontou, a mineradora fornece insumos para a produção de armas e munições, tais como: ferro, níquel, cromo, tungstênio, alumínio, nióbio, zinco, manganês, carbono, molibdênio, enxofre, sílica, fósforo, ouro, cobalto e lítio.


Por fim, articulamos aqui o último conceito trazido por Quijano que se associa ao atual padrão de poder mundial: (4) o eurocentrismo. Na eterna corrida para publicar artigos A1, em mercados editoriais que lucram com a monopolização do conhecimento, muitos pesquisadores esquecem de se perguntar a quem o conhecimento que ele produz serve. Quais lacunas buscamos preencher, quais objetivos pretendemos atingir com nossas pesquisas? Nossa produção de conhecimento tem atendido aos interesses de quem?


Formamos geólogos para servir ao sistema? Produzimos ciência que fomenta a destruição planetária [e, consequentemente, nossa própria destruição como humanidade]? Sustentamos uma produção de conhecimento colonial, que dicotomiza as relações humano e natureza, razão e emoção? Produzimos “ciência neutra”?

Como disse Angela Davis, o conhecimento torna uma pessoa inadequada para a escravidão. Nesse sentido, é preciso ter em mente que a práxis revolucionária precisa aliar teoria crítica e prática política numa relação dialética. O conhecimento é uma ferramenta que, por si só, não muda o mundo; muda pessoas, e pessoas mudam o mundo - e, apesar de parecer uma frase motivacional, é mais uma das reflexões trazidas por Paulo Freire. O conhecimento liberta, mas a questão é: que tipo de conhecimento? Talvez o caminho para a construção de uma geologia a partir de perspectivas decoloniais esteja por aí… talvez!




Talita pode ser contatada pelo email tgantus@gmail.com, está nas redes sociais como @gantustalita e publica textos pessoais em www.talitagantus.info

Sobre a autora acesse aqui.

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