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Quanto vale a terra que você é? O caso do Quilombo do Campo Grande, MG
Atualizado: 7 de abr. de 2021
Anos e anos se passam, entretanto, essa indagação resiste a trancos e barrancos. A busca pelo poder e dominação sobre a terra não vem de hoje, lembremos-nos do primeiro semestre de 1500, quando acá chegava Pedro Álvares Cabral e sua pomposa navegação. Via por essas bandas continentais atlânticas a famigerada e tão valiosa “terra”, não importou muito quem nela encontrou, mas muito se valeu das coisas que dela tirou. Ela, a terra, esfoliou-se em prol do colonialismo.
Desde então, a terra brasileira vem sendo flagelada dia após dia, grandes mineradoras reviram impiedosamente o manto em que a terra se deita, desnudam com maior brutalidade já vista, um estupro a céu aberto para com a Terra. Não há respeito com a natureza que ali se encontra, não há cuidado com a água que ali mata a sede. A sede é maior, a sede suga grandes feixes de terras, transmutando a paisagem heterogênea, mista e robusta em grandes paisagens homogêneas, promovendo o contínuo estrutural e estruturante sistema capitalista colonial.
Cada dia que passa a terra vem pedindo socorro, ouço os gritos estonteantes ao entardecer da minha janela, uma fumaça amarelada, um ar seco, quente, soluços de uma Terra em dias sofridos. Estes dias estamos acompanhando lá pelas bandas do sul mineiro um travamento não muito sazonal, haja vista os atos sequenciais de “despejo” das terras que estão sendo usadas por assentamentos oriundos do MST (Movimento dos Trabalhadores sem Terra) acabam sendo recorrentes no Brasil, onde não há grandes apoios de incentivo ao uso consciente da terra para a produção de alimentos. Aliás, não há incentivo à produção de alimento, visto que quem planta o alimento que chega ao nosso prato é, majoritariamente, a agricultura familiar (e não o agronegócio). Na última quarta-feira (12/08/2020), foi assinado pelo atual governador de Minas Gerais, Romeu Zema, a carta de despejo de mais de 450 famílias do acampamento do Quilombo Campo Grande, na cidade de Campo do Meio, MG.
As famílias residem há mais de 20 anos na área que está sendo “tomada” pelo Estado. Antes do assentamento, esse local foi sede de uma indústria açucareira que encerrou suas atividades em 1996, deixando inúmeros casos de trabalhadores e suas famílias sem ressarcimento de seus honorários e terras improdutivas para trás.
Nesse desfecho, as famílias dos trabalhadores desempregados assentaram nas terras onde antes era a indústria que os empregava e tornaram-se agricultoras, plantando para sua subsistência e vendendo o excedente agrícola. Há também, na importância dessa resistência familiar, a proposta de um cultivo agroecológico, mais próximo da própria terra, e que cria um sentimento umbilical com o planeta. Nesse texto aqui, Talita nos traz a perspectiva da agroecologia como construção contra-hegemônica.
Existe uma rede de conexão espiral que atua junto à comunidade local: são aproximadamente 40 hectares de hortaliças e inúmeras árvores frutíferas e nativas. No seio do assentamento existem as famílias produtoras do Café Guaií. Todas essas informações nos encaminham para o não entendimento de ações violentas de despejo como as que têm sido operadas. Isso remonta à apropriação de um uso e cobertura do solo em prol de grandes indústrias do agronegócio a serem controladas pelo grande sistema capitalista mundial.
Com todo esse reboliço, o uso das forças armadas foi exercido, várias famílias acordaram com policiais armados em seus quintais. Derrubaram, antes de tudo, num ato simbólico, a escola infantil do assentamento. Nem o atual momento de pandemia que enfrentamos foi suficiente para cessar o despejo. Famílias com crianças, idosos, todos sujeitos à mecanização do poder estatal que age imperativamente sobre a população, que, de antemão, luta pela religação à terra.

As mulheres Sem Terra do acampamento Quilombo Campo Grande, em Campo do Meio (MG), constroem há 7 anos o Coletivo de Mulheres Raízes da Terra, na perspectiva de manter a herança ancestral do cuidado com ervas medicinais. (Foto: MST)
Estar umbigado à Terra é respeitar sua temporalidade, sua emancipação e seu destino próprio. A Terra nos convoca a um religamento, uma possibilidade de encontro. O caso do Quilombo do Campo Grande, em Minas Gerais, nos convida a meditar sobre nossos atos diários, sobre nossa maneira de ser-terra. Que nossa solidariedade, não necessariamente a afetiva, mas a responsável, a coletiva, a que nos impele a solidarizarmo-nos aos nossos semelhantes, esteja voltada às famílias trabalhadoras mineiras que estão passando por esse despautério.
Quanto vale a terra que você é? Vale a sua existência enquanto ser-terra que somos.
Para mais informações sobre o caso do Quilombo do Campo Grande-MG, acesse o site do MST.
Se você discorda da brutalidade que é o despejo de famílias trabalhadoras, idosos e crianças, que plantam nosso alimento e que da terra nada tiram, a não ser seu próprio sustento, e que muito amor nela depositam, envie um e-mail para o Presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais responsável pelo caso.
Caso esteja sem inspiração para elaborar o corpo do e-mail, o Felipe Ramos facilitou sua vida:
Olá, Dr. Sr. Gilson Soares,
Vim, por meio deste, solicitar a revogação da ação judicial referente ao processo de reintegração de posse nº 6105218-78.2015.8.13.0024. O Quilombo Campo Grande afirma que já cumpriu há meses a liberação do espaço da usina, e solicito aqui solidariedade às famílias em meio à pandemia, e também relembro o papel importante que elas têm no uso social da terra, conforme previsto na Constituição Federal, ao produzir alimentos agroecológicos há anos. O governador Romeu Zema se isenta da responsabilidade e coloca como responsável o judiciário por esse tipo de decisão. Estou muito incomodado com a ação da PM no local e gostaria de solicitar, assim como muitos têm feito nas redes sociais, a interrupção da ação e solidariedade ao quilombo.
Atenciosamente.
[Nota da editora: Esse artigo expressa a opinião pessoal do autor. Essas opiniões não necessariamente refletem um posicionamento oficial d’a_Ponte]

Tiago Rodrigues Moreira é professor e especialista em Geografia, mestrando do programa Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas pela Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp, localizada em Limeira-SP. Se interessa pelo conhecimento de vida das pessoas, questões que circundam a sexualidade e estudos de gênero, fenomenologia, corporeidade, liberdade, riscos e vulnerabilidade. É membro do Grupo de Pesquisa Geografia e Contemporaneidade (UFF), do Grupo de Pesquisa Geografia e Fenomenologia (Unicamp), do Grupo de Pesquisa Geografia Humanista, Arte e Psicologia Fenomenológica (GHUAPO-UFVJM) e do Grupo de Pesquisa Geografia Humanista Cultural (GHUM-UFF). O que o move é o desejo de fazer ciência a partir do conhecimento de mundo.