Bárbara Zambelli
Rastreando o consumo de água
Atualizado: 7 de abr. de 2021
Você tem noção do seu consumo de água? E se eu te disser que dentro de 200g de carne bovina cabe mais de 3.000L de água - será que você pode mesmo avaliar seu consumo?
Nesse texto busco trazer luz a essa questão fazendo uma análise desde o nível individual, sobre como as escolhas pessoais podem refletir no consumo sistêmico de água, até o nível global, visando compreender como a água circula no mundo e quais suas implicações.
Resolvi abordar essa temática porque a água, além de ser nossa necessidade vital mais básica, também é a base de todos os bens e produtos que consumimos e utilizamos diariamente. Ela, bem como qualquer outro recurso natural, é finita e está distribuída de maneira desigual ao redor do globo - espacial e temporalmente, levando vários locais à escassez, enquanto outros sofrem com inundações e fortes chuvas. Logo, temos que lidar com problemas de escassez hídrica toda vez que a água é demais, muito pouca ou muito suja.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a alimentação e a agricultura (FAO), a escassez hídrica pode ser dividida em duas: física e econômica. A primeira ocorre quando não há água suficiente para suprir todas as demandas. Ela está geralmente associada a regiões áridas (como em desertos), mas pode ser criada artificialmente pela superexploração dos recursos hídricos. Alguns de seus sintomas são degradação ambiental severa e aumento da ocorrência de conflitos. A segunda é causada pela falta de investimento no setor ou pela falta de capacidade humana em satisfazer as demandas pela água, mesmo em locais onde ela é abundante. Seus sintomas incluem infraestrutura inadequada (pessoas têm problemas em obter água para demandas domésticas e outros usos), alta vulnerabilidade a variações sazonais (secas e inundações) e distribuição desigual de água, mesmo que a infraestrutura já exista.

Foto na região do baixo Tapajós, Pará. A região norte do Brasil, apesar de ser riquíssima de recursos hídricos, tem parte de sua população propensa a escassez hídrica econômica, tendo em vista o caráter desigual do acesso à infraestrutura.
(Foto: Bárbara Zambelli)
Aqui segue um bom motivo para ficar alerta: de acordo com a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE): 47% da população mundial sofrerá com a escassez de água até 2030.
Para discutir o uso sustentável da água, quero explorar alguns conceitos importantes nos parágrafos seguintes.
A água virtual é o primeiro deles. Ela se relaciona aos usos indiretos de água durante os processos de produção, como na agricultura, na produção de energia ou nos transportes. Vamos a alguns exemplos: a média global de consumo de água para produção de 1kg de carne bovina é de cerca de 15.500L - o equivalente a 47 banhos de 8 minutos de duração.
Por outro lado, para produzir a mesma quantidade de vegetais, são necessários apenas 322L, para os cereais são 1.644L/kg e para o leite, 1.000L/kg. Para produção de uma calça jeans são necessários ao menos 8.000L.
Com isso em mente, volto à pergunta: você sente que realmente conhece o seu próprio consumo de água? Gostaria de descobrir? Neste link você pode calcular sua pegada hídrica pessoal.
Dessa maneira chegamos ao segundo conceito importante: pegada hídrica. Ela revela padrões de consumo de água durante a produção e consumo e bens e serviços, desde o nível individual até o nacional. Além disso, ela também relata a quantidade de água que foi contaminada durante esses processos. Ao analisar a pegada hídrica, é possível quantificar o consumo total de água ao longo das cadeias produtivas.
Globalmente, a maior parte do consumo de água se dá nas áreas de agricultura e indústria, enquanto os usos diretos (como beber, cozinhar, tomar banho, limpar e assim por diante) são responsáveis por apenas uma pequena parcela. [Nesse site você pode encontrar várias estatísticas interessantes sobre água virtual.]
Em relação ao Brasil, segundo o relatório anual da Agência Nacional de Águas (ANA) sobre a conjuntura dos recursos hídricos, a agricultura e a criação de animais lideram o ranking de consumo de água, com 77,7% do total, seguida da indústria com 9,5% e do abastecimento urbano com 9,1%. Além desses usos, também estão listados a mineração, as termoelétricas e o abastecimento rural. Vale ressaltar que esse consumo varia de região para região, de acordo com as atividades econômicas e densidade populacional urbana e rural de cada área.

(Fonte: Relatório sobre a conjuntura de recursos hídricos, ANA 2019)
Bom, aqui chegamos ao terceiro conceito importante: fluxo internacional de água virtual. Sempre que um país exporta quaisquer produtos, sejam eles cereais, vegetais, petróleo, minérios, roupas, tecnologia e assim por diante, está exportando também a água (virtual) necessária para produção desses produtos.
Ocorre um problema relacionado a esse comércio internacional, porque os efeitos indiretos, também conhecidos como externalidades negativas, da exploração da água são terceirizados para outros países. Além disso, os consumidores geralmente não têm consciência e nem são cobrados financeiramente pelos problemas hídricos causados nos países estrangeiros, onde seus produtos estão sendo produzidos.
Se dermos uma olhada na lista de maior pegada hídrica por país, os Emirados Árabes Unidos lideram, seguidos pelos EUA e Canadá. O Brasil figura na sexta posição.

Áreas de produção agrícola intensiva em Goiás, com produção de commodities voltada para a exportação - observe que cada círculo corresponde a um pivô de irrigação central. (Foto: Bárbara Zambelli)
Então, como podemos agir, a nível individual, para reduzir nosso consumo de água e, consequentemente, nossa pegada hídrica?
Primeiramente, precisamos pensar fora da caixa. Reduzir o consumo de água significa muito mais do que fechar a torneira enquanto se escova os dentes. Precisamos repensar em todo nosso modo de produção e consumo - vale a pena dar uma olhada nesse texto da Talita.
Um bom começo seria cortar a carne um dia da semana (segunda sem carne, por exemplo). Em vez de comprar roupas novas todos os anos, procure por lojas de segunda mão, brechós ou troque com os amigos. Escolha o transporte coletivo ou bicicletas em vez de carros particulares. Quando precisar comprar algo, sempre dê preferência a produtos locais em vez de produtos importados. No geral, aja de maneira consciente!
Vale lembrar que a água, como um bem público, não deveria ter seus usos balizados apenas por critérios econômicos. Escolhas na alocação e gestão desse recurso são políticas - bem como a fixação de preços e incentivos fiscais. Segundo o Prof. Arjen Hoekstra, criador do conceito ‘pegada hídrica’, três pilares são essenciais para uma alocação inteligente da água. O primeiro é a sustentabilidade ambiental, que definiria a pegada hídrica máxima por bacia hidrográfica, de modo a assegurar o balanço hídrico da região. A segunda é a isonomia, ou equidade social, que se baseia na divisão justa da pegada hídrica entre comunidades. E a última é a eficiência na alocação do recurso, balizadas por um valor de referência de pegada hídrica por produtos.
Vandana Shiva, ativista ambiental indiana, em seu livro Guerras pela água: privatização, poluição e lucro, escreve: “Água não é uma invenção humana. Ela não pode ser limitada e não respeita limites. Sua natureza é compartilhada. Ela não pode ser privatizada e nem vendida como commodity”.
Texto originalmente publicado em https://blogs.egu.eu/network/gfgd/2019/07/24/tracking-water-consumption/, no dia 24 de julho de 2019.
Bárbara está no twitter e instagram como @taiobarbara e pode ser contactada pelo email ba.zambelli@gmail.com