Talita Gantus
Rodas de capoeira: um território coletivo
Nesse tempo de isolamento em casa (para quem assim pode - e, quando pode, deve - estar), é importante fazermos o movimento de relembrar e, assim, reler a cidade como ela à nós se apresenta: se inclusiva, se vivenciada como direito pleno, se constituída de espaços democráticos.
É esse movimento de investigação, releitura e reflexão sobre o espaço em que vivemos que nos impele à elaboração da práxis: teorizar a partir da vivência prática, e transformar a prática pela incorporação da teoria elaborada. A práxis é o que, de fato, transforma a realidade de maneira consciente.
Na grande maioria das cidades brasileiras, temos vivenciado, ao longo do tempo, aquilo que Lúcio Kowarick chama de ‘cidadão privado’. Baseia-se num projeto centrado na reclusão da esfera doméstica, apoiado na sociabilidade primária (da família nuclear), e edificado em contraposição ao mundo da rua, o espaço público. Este último é tido como o local em que predomina o arbítrio e a violência.
Ruas desertas, praças vazias, ausência de equipamentos de lazer, de brinquedos, de infraestrutura para abrigar eventos comunitários e de espaços em que crianças possam circular de forma segura. Desocupa-se o espaço público. Evita-se o diferente, pois a mistura social é vivenciada como confusão, desarmonia ou desordem.
As relações sociais erguem-se em torno da vida privada - a casa - que rejeita a esfera pública - a rua. Desarticula-se, desmobiliza-se e, com isso, nega-se a possibilidade das trocas que a convivência nos permite, e que são essenciais na nossa constituição enquanto sujeitos históricos e seres sociais. Apaga-se, assim, grande parte da cultura articulada por meio da história oral, das práticas coletivas e da realização das formas de expressão.
Dia 3 de agosto celebra-se o dia da/do capoeirista. A partir daqui, peço licença aos que vieram antes de mim.
Como disse Eusébio Lôbo da Silva, conhecido entre nós como Mestre Pavão, em seu livro ‘O corpo na capoeira’, “falar da história da capoeira é resgatar uma parte significativa da história do Brasil” - a parte que ficou relegada pelo discurso hegemônico. Os livros de história contavam [e, em grande medida, ainda contam] apenas aquilo que interessa à elite dominante. “É nesse processo dialético entre história e estórias que hoje se vai construindo, sem a supremacia de uma sobre a outra, um quadro reflexivo mais completo da nossa sociedade.”
A nefasta destruição de documentação sobre a escravidão, comandada por Rui Barbosa (que, inclusive, nomeia várias ruas Brasil afora), só adiou o reconhecimento de parte da nossa história. Mas seguimos atentas e atentos junto à resistência dos movimentos negros ao longo de todos esses séculos [desde a colonização europeia e escravização dos povos de África], pela compreensão do nosso passado e pelo reconhecimento das contribuições dos múltiplos grupos que compuseram e compõem a nossa sociedade.
Segundo Mestre Pavão, “a capoeira é uma arte de difícil definição, e sua utilização incorporou marcantes características nos vários contextos históricos e políticos da nação brasileira”. No período da escravidão, o ‘jogo guerreiro’ ou ‘dança guerreira’, e a dissimulação estavam bastante acentuadas. À medida que ela foi se tornando mais claramente uma identidade de grupo racial, outros elementos foram sendo incorporados.

Roda de Capoeira Grupo Abadá, evento realizado na praça pública de Americana, SP. (Foto: Gonsalves)
A capoeira tem em suas raízes formadoras danças angolanas da região de Luanda, como a bassúla, a cabangúla, a umudinhú e n’ngolo. Quando chegaram ao Brasil, os escravizados trazidos de Angola desenvolveram movimentos de luta na tentativa de se protegerem contra as agressões que sofriam de seus colonizadores. Para reprimi-los, foi proibida a prática de luta pelos escravizados. Estes, então, passaram a utilizar ritmos simples para adaptar as lutas com as danças angolanas. O resultado dessas incorporações, que se adaptaram ao contexto histórico-político da época, foi a criação da capoeira.

Roda de Capoeira Grupo Abadá, evento realizado na praça pública de Americana, SP. (Foto: Gonsalves)
A prática da capoeira permaneceu proibida no Brasil até 1930, e era comumente associada à ‘vadiagem’, prática também criminalizada e que retrata a discriminação com o povo negro ex-escravizado, marginalizado e não inserido na sociedade e no mundo do trabalho após a abolição. Essa proibição também revela o racismo cultural empregado às práticas e manifestações culturais e religiosas afro-brasileiras, algo ainda fortemente presente na nossa sociedade.
Em 1930, um famoso capoeirista chamado Mestre Bimba apresentou a capoeira para o então presidente da república, Getúlio Vargas, que ficou maravilhado a ponto de declarar que, a partir daquele momento, a capoeira seria considerada um autêntico esporte nacional.
Em novembro de 2014, a Roda de Capoeira foi reconhecida pela Unesco como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Uma conquista muito importante para a cultura brasileira. Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a Roda de Capoeira é “um elemento estruturante de uma manifestação cultural, espaço e tempo, onde se expressam simultaneamente o canto, o toque dos instrumentos, a dança, os golpes, o jogo, a brincadeira, os símbolos e rituais de herança africana - notadamente banto - recriados no Brasil.”

Roda de Capoeira Grupo Abadá, evento realizado na praça pública de Americana, SP. (Foto: Gonsalves)
Profundamente ritualizada, a Roda de Capoeira congrega cantigas e movimentos que expressam uma visão de mundo, uma hierarquia e um código de ética que são compartilhados pelo grupo. Na roda se batizam os iniciantes, se formam e se consagram os grandes mestres, se transmitem e se reiteram práticas e valores afro-brasileiros.
De acordo com Mestre Pavão, devido à carência de documentos históricos, não se sabe ao certo o local de origem da capoeira. Mas se sabe que ela era muito praticada nos cais de porto das cidades do Rio de Janeiro e de Salvador. Percebemos que, na Roda de Capoeira, constituída nos espaços públicos desde os séculos passados, são proporcionadas relações sociais, políticas e culturais que podem ser entendidas como fundamento de um processo de transformação social, por meio da apropriação do território.
Na dissertação de mestrado ’Espaço público: apropriação e direito ao uso. A territorialidade das rodas de capoeira em Brasília’, Torres afirma que “(..) enquanto local de encontro, interação, diferença, expressão, ação política, comunicação e conflito da sociedade, o espaço público garante a conservação da relação secular entre a capoeira e esse meio, através de apresentações públicas, realização de aulas e das rodas.”

Roda de Capoeira Grupo Abadá, evento realizado na praça pública de Americana, SP. (Foto: Gonsalves)
Para além de toda a cultura imaterial que os elementos presentes em uma Roda de Capoeira traz consigo - os golpes, a forma de articulação em roda, a posição e presença dos instrumentos, a linguagem corporal, a ordem de entrada do canto e das palmas - existe um importante [e potente] papel que os cânticos desempenham na transmissão da história oral, ocultada pela história curricular hegemônica:
“Na roda de bamba, eu
Quero ver dendê
Agbá é àduní
nagôs, malês e obás
(...)
E pra quem quiser dizer, oi iáiá
Que essa língua não é minha
Preste atenção na cantiga
Que vosmicê vai me entender”

Roda de Capoeira Grupo Abadá, evento realizado durante a Feira da Praça do Côco. Espaço de roda permanente de capoeira, inaugurada pelo Instrutor Neto e equipe, em Barão Geraldo, Campinas, SP. (Foto: Josué Marinho)
Quando, enfim, sairmos do isolamento, precisaremos transformar a identidade de ‘cidadão privado’, reclusos em nossas casas, consumidores de espaços fechados e restritos. Precisaremos superar no imaginário coletivo a ideia que relega o espaço público ao lugar de marginalidade e violência, reverberando em nossas mentes e condicionando nossas ações individualizantes. Precisaremos resgatar a importância da ocupação e da vivência do (e no) espaço público. Precisaremos despertar o sentimento de pertencimento que a apropriação do lugar nos suscita como elemento estruturante da potência política das práticas coletivas.

Roda de Capoeira Grupo Abadá, evento realizado durante a Feira da Praça do Côco. Espaço de roda permanente de capoeira, inaugurada pelo Instrutor Neto e equipe, em Barão Geraldo, Campinas, SP. (Foto: Josué Marinho)
Nisso, o poder público deve exercer um papel fundamental na produção, fomento e consolidação de espaços destinados à cultura, ao lazer e ao esporte. Principalmente quando relacionados a um resgate histórico descolonizante, como o é a capoeira. Precisaremos fazer, desse momento de isolamento, uma oportunidade para repensarmos como os espaços públicos são constituídos e porque permitimos que ele virasse o espaço da violência.
A capoeira, bem como a vida e a construção da materialidade histórica, se dá pelas ações e práticas cotidianas. Os cânticos da roda nos informam e nos contam sobre a cotidianidade do povo negro escravizado, que hoje, representado pelos seus descendentes, precisa ter voz: a cidade é um direito. E a capoeira também é sobre isso. Como disse Mestre Pastinha, “Capoeira é tudo que a boca come”.