Talita Gantus
Sociedade de risco
Atualizado: 7 de abr. de 2021
“Na modernidade tardia, a produção social de riqueza é acompanhada sistematicamente pela produção social de riscos”. Essa afirmação foi feita por Ulrich Beck, sociólogo alemão e autor do livro Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Era 1986, ano do desastre de Chernobyl. Num levantamento sobre acontecimentos recentes no Brasil, chegamos a uma rápida conclusão de que tudo que lembra distopia, é atemporal. 1986 pode ser 2015, ano do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, operada pela Samarco. Ou pode ser 2019, ano de mais um rompimento, agora na barragem da mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, operada pela Vale.
As duas tragédias ocorreram em Minas Gerais, um estado que é um verdadeiro campo minado e que sente na pele a tragédia da dependência econômica mineral, reforçando o modus operandi neocolonialista extrativista brasileiro. Barão de Cocais e Macacos, distrito de Nova Lima, são exemplos de localidades que vivem o risco iminente de mais rompimentos de barragens.
A Assembleia Legislativa de Minas, no entanto, só conseguiu aprovar a Lei 23.291/2019, que estabelece regras mais rígidas para a segurança de barragens, após o rompimento em Brumadinho. A nova legislação estadual tem origem no projeto de lei de iniciativa popular “Mar de Lama Nunca Mais”. Todavia, regulamentos de proteção e segurança não foram suficientemente desenvolvidos, e, quando existem, são com frequência letra morta.
Beck, em seu livro, nos atenta aos fatos históricos de que a distribuição de riscos e as riquezas se atêm ao esquema de classes, porém de modo inverso. As riquezas se acumulam em cima; os riscos, embaixo. Assim, esses parecem reforçar a sociedade de classes.
Nos casos de Brumadinho e Mariana, quem tem arcado com o ônus dos prejuízos imensuráveis é a população atingida, que, sem capital político e econômico, não consegue competir com o lobby da mineração nas instâncias política e jurídica.
Isso sem fazer jus às consequências ambientais irreparáveis ao longo de todo o percurso da lama. Essas se perpetuarão para além da escala de tempo histórico, e reverberarão na escala de tempo geológico.
Ainda hoje, a devida reparação às vítimas e aos municípios atingidos está longe de ser efetivada no caso do rompimento da barragem do Fundão. Vale salientar que os responsáveis diretos pelo crime foram livrados pela Justiça da acusação de homicídio.
Em Sociedade de risco, escrito na Alemanha do século passado, Beck nos diz: “sabendo da impossibilidade de que se façam adotar regulamentos de segurança, podem-se isentar de cumpri-los. Dessa forma, eles “lavam as mãos” e, com a consciência tranquila e com baixos custos, transferem a responsabilidade à “cegueira” cultural da população em relação aos riscos”.
Transcrevo aqui o trecho para nos distanciarmos do “viralatismo”, incutido na sociedade brasileira, de que apenas no Brasil existe impunidade. Esta é comumente estabelecida numa relação direta de poder proveniente do capital econômico. E já sabemos que “a corda arrebenta para o lado mais fraco”.

Foto: Verão no hemisfério Norte (Maximilian Reuter). Distribuída por Imaggeo.
As possibilidades e capacidades de lidar com situações de risco, contornando-as ou compensando-as, acabam sendo desigualmente distribuídas entre distintas camadas de renda e de escolaridade. Quem dispõe de mais recursos financeiros pode tentar contornar os riscos através da escolha do local e da configuração da moradia. O mesmo vale para a educação e as correspondentes posturas em relação à informação.
Vivemos na era da superprodução de riscos invisíveis que se somam. Ou, como diria Beck: “Riscos ecológicos, químicos, nucleares e genéticos; produzidos industrialmente, externalizados economicamente, individualizados juridicamente, legitimados cientificamente e minimizados politicamente”.
Acrescentam-se, ainda, os riscos geológicos, atrelados ao processo de ocupação desordenada que se orienta pela lógica distributiva desigual.
Devemos estar atentos ao seguinte fato: a depender da magnitude do impacto, os danos interseccionam a estrutura de classes, atingindo toda a humanidade e pondo em risco a biodiversidade ecológica. Os rios Doce e Paraopeba nos evidenciam isso. Como diria, mais uma vez, Ulrich Beck, “o reverso da natureza socializada é a socialização dos danos à natureza”.