Fernanda Tolentino
Transposição do Rio São Francisco: o quê, por quê e para quem?
Atualizado: 19 de abr. de 2021
A Transposição do Rio São Francisco é um daqueles temas que foram (e são) constantemente discutidos e pontuados nas mais diversas rodas de conversa entre debates políticos, ambientais, geológicos, sociais, culturais, climáticos, e por aí vai. Essas discussões mostram claramente o caráter transdisciplinar dessa intervenção, que atinge e impacta múltiplas esferas da nossa sociedade.
Conversar sobre matérias transdisciplinares é com a gente mesmo.
Ao contrário do que é sabido pela população brasileira, a transposição do R. São Francisco é pensada no Brasil desde 1840, quando o intendente da comarca do Crato (hoje, Ceará), Marcos Antonio de Macedo, propôs que fosse sanado o problema da seca, resultado da intensa estiagem na região, entre os anos de 1844 e 1845. O projeto foi pensado porém não foi implementado por um motivo bastante comum no Brasil: falta de recursos na engenharia.
Apenas 30 anos após o ocorrido, a questão chega à Coroa através de uma das mais terríveis secas já vividas pela região Nordeste do país – conhecida como a Grande Seca – ocorrida entre 1877 e 1879. Então, D. Pedro II dá início a tentativa de realização de um projeto que pudesse sanar a carência de água da região Nordeste do Brasil. Porém ela é abortada frente às dificuldades técnicas de fazer com que as águas do Velho Chico transpusessem a Chapada do Araripe, localizada na divisa dos estados do Piauí, Pernambuco e Ceará. Diversas tentativas de sanar o problema foram feitas, inclusive financiadas por tesouros da família real, uma vez que, de acordo com nosso Imperador: “Não restará uma joia da Coroa, mas nenhum nordestino morrerá de fome”.
Contudo, como outro fato recorrente do Brasil, ficaram-se as jóias e o problema não foi sanado. A questão só volta a ser discutida em 1943 durante o Governo de Getúlio Vargas, avançando pelos mandatos de Figueiredo, Itamar Franco, FHC, até o Governo Lula, onde a iniciativa ganha força.
Após a explanação histórica vamos à explanação técnica da obra: a Transposição do Rio São Francisco é um projeto para deslocar parte das águas do Rio São Francisco para as regiões mais áridas do Brasil, onde o acesso à água é difícil. É um empreendimento federal, e prevê aproximadamente 700 km de canais de concreto divididos em dois eixos: norte e leste, que estão locados ao longo dos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. O projeto teve início no ano de 2007 e sua finalização está prevista para esse ano. O eixo leste foi inaugurado durante o Governo Temer.

Mapa do Projeto de Integração do São Francisco (Ministério da Integração Nacional - distribuido via WikiMedia Common sob a licença CC-BY-3.0)
Pois bem, já temos as respostas de “o que” e “por que”, certo? Errado. A justificativa do “porquê” do projeto está intimamente relacionada ao “pra quem”. O projeto da transposição pretende distribuir o fornecimento de água da seguinte forma: 70% para irrigação, 26% para uso industrial e 4% para população difusa. O que esses números querem dizer? Eles mostram que a finalidade real do projeto é viabilizar o crescimento da agroindústria e carcinicultura na região. Contudo, apesar do propósito meramente econômico-financeiro da iniciativa parecer diminuir seu valor, uma avaliação minuciosa dessa condição mostra o contrário: o aumento dessas atividades econômicas na região traz geração de emprego e renda em uma área carente do Brasil. Ou seja, temos um projeto com aparência social, viés econômico e resultados socioeconômicos. Esse cenário seria o melhor possível se não fosse por uma única questão: o meio-ambiente.
De acordo com o RIMA do projeto, os impactos da obra vão desde alterações dos ecossistemas à instabilização de encostas no entorno dos corpos de água, passando por aceleração de processos de desertificação e proliferação de vetores de doenças. Além dos impactos ambientais, tem-se impactos sociais, culturais e históricos tais como interferências em terras indígenas, sítios arqueológicos e especulação imobiliária.

Canal de transposição próximo à Cabrobró, PE (distribuido via WikiMedia Common sob a licença CC-BY-3.0)
A obra já está praticamente finalizada e o custo ambiental é unicamente nosso. Ao se discutir a questão da transposição pouco se falou sobre os reais interesses envolvidos na execução do empreendimento e abordou-se, ainda menos, os impactos reais dessas atividades na vida das pessoas. Estudos mostram que a disponibilidade de água nas regiões dadas como “críticas” seriam suficientes para a demanda populacional desde que fossem construídos reservatórios com capacidade para armazenar a quantidade de água necessária durante períodos de estiagem. Além disso, foram sugeridos projetos de aduções específicas do rio projetadas para conduzir as vazões necessárias ao atendimento seguro das demandas socioeconômicas, que resultariam em custos reduzidos quando comparados à transposição. Nenhuma das opções citadas foi considerada e o “por que” disso pode ser entendido pela fala de Almacks Silva, secretário da Câmara Consultiva Regional do Submédio do São Francisco, para o Jornal Folha de São Paulo: “É preciso saber para quem a água da transposição vai. Se vai para a produção de camarão para exploração ou o pólo industrial de Fortaleza, não faz sentido”.